Ouvido Absoluto

Recentemente li este artigo na revista American Suzuki Journal, a publicação oficial da Associação Suzuki das Américas. Devido à grande relevância do assunto aos flautistas, já que a flauta doce é tão utilizada na educação musical de crianças, pedi a autorização à autora do artigo e traduzi o mesmo, para que todos no Brasil e nos países lusófonos possam ter acesso a este conteúdo em nossa língua materna – afinal é exatamente com a língua materna que o artigo se relaciona.

A conexão entre o ouvido absoluto e a aquisição da língua materna

Por Jessica Jenkins Davis
Adaptação para português: Gustavo de Francisco

Seguindo o princípio que “assim como todas as crianças adquirem a habilidade de falar sua língua materna, qualquer criança que for treinada adequadamente pode desenvolver a habilidade musical,” Dr. Shinichi Suzuki desenvolveu uma nova abordagem para a educação musical, e isto transformou a maneira com que a música era ensinada. É importante a todos nós como professores de música, que não fiquemos restritos apenas nas idéias de um único educador ou método, mas sim que consideremos outras pesquisas para defender e orientar os nossos próprios métodos de ensino. Ouvir música em casa, assim como iniciar o estudo musical bem cedo, são dois aspectos da abordagem Suzuki que encontra respaldo em pesquisas científicas recentes. Pesquisas sobre ouvido absoluto e línguas tonais confirmam que a habilidade musical e a aquisição da linguagem, idéia do Dr. Suzuki, estão conectadas.

Ouvido Absoluto

Pintura de Beethoven por Joseph Karl Stieler (1820)
Pintura de Beethoven por Joseph Karl Stieler (1820)

Não seria maravilhoso ouvir uma música pela primeira vez e conseguir saber exatamente quais notas foram tocadas? Essa habilidade, conhecida como ouvido absoluto, é a habilidade de reconhecer e reproduzir uma nota (ou altura) sem nenhuma referência. Apenas uma entre dez mil pessoas possuem o ouvido absoluto, e esta habilidade é geralmente associada a muitos músicos famosos, de Beethoven a Yo-Yo Ma. Pesquisadores nas áreas de psicologia e música têm estudado como as pessoas adquirem esta habilidade e também sua relevância para músicos modernos. Muitos educadores e músicos têm tentado ensinar a eles mesmos, e também seus estudantes, a desenvolver esta habilidade, porém geralmente sem sucesso. Pessoas com ouvido absoluto podem cantar ou identificar notas rapidamente, praticamente sem pensar a respeito, comparado à simples habilidade de identificar as cores; a maioria das pessoas com ouvido absoluto não lembram como adquiriram esta habilidade (1).

A idade é um fator importante no desenvolvimento do ouvido absoluto. Num estudo recente, crianças muito novas com oito meses de vida foram capazes de executar tarefas que requeriam o reconhecimento da altura absoluta de sons (2). Em uma avaliação onde participaram mais de seiscentos músicos, foi encontrado que 40% dos músicos que começaram a estudar música antes dos 4 anos de idade desenvolveram ouvido absoluto, enquanto apenas 2,7% dos músicos que começaram os estudos depois dos 12 anos de idade desenvolveram esta habilidade (3). Estas estatísticas mostram que há uma correlação entre o desenvolvimento do ouvido absoluto e a idade em que a criança começa a aprender música.

Uma pessoa normal consegue cantarolar músicas conhecidas em alturas muito próximas da tonalidade original, mas é incapaz de verbalizar o nome da tonalidade em que está cantando (4). Isto demonstra que humanos têm uma excelente e confiável memória para alturas sonoras, porém a maioria das pessoas é incapaz de identificar uma nota com um nome. A Dra. Diana Deutsch compara esta falta de habilidade com a anomia de cor, que é a habilidade de reconhecer mas não nomear as cores. Existem apenas 12 notas na oitava, e as pessoas sem ouvido absoluto podem reconhecer que estas notas são diferentes e que são familiares, porém não podem dar nomes às notas. Nos dias de hoje, alguns pesquisadores acreditam que o ouvido absoluto precisa ser desenvolvido nos primeiros anos de vida, e está diretamente relacionado com as partes do cérebro responsáveis pela aquisição da linguagem. Recentemente, pesquisadores têm especulado que desenvolver o ouvido absoluto é similar a desenvolver as nuances ou sotaques da língua materna (5).

Falar naturalmente:
O aprendizado da língua e o ouvido absoluto

Pessoas que tem o vietnamita ou o mandarim como línguas maternas usam alturas específicas enquanto pronunciam palavras. Por exemplo, em mandarim, a palavra “ma” significa mãe quando falado em uma altura, é cânhamo ou linho quando falado em outra altura(6). Também descobriram que a altura usada na fala destas pessoas não é determinada pelas características físicas da pessoas como altura e peso por exemplo, mas sim, pela comunidade em que esta pessoa vive. Em um estudo a respeito de linguagens tonais, vietnamitas foram convocados a recitar a mesma lista de palavras em dois dias diferentes, e a experiência foi gravada para comparar se eles usavam as mesmas notas durante a fala em diferentes dias. Foi provado que a sua pronúncia em diferentes palavras era muito consistente, e a maior parte do tempo havia uma diferença menor que um semitom entre os dois dias. Como as línguas tonais associam cada palavra a uma nota específica, acredita-se que eles desenvolveram uma forma de ouvido absoluto (7).

Em resposta a estas descobertas, pesquisadores criaram uma hipótese que a habilidade de associar as alturas da fala com nomes é geralmente adquirida no primeiro ano de vida, durante o “período crítico” – que chamarei de janela de aprendizado – que as crianças adquirem as habilidades da fala (8). Este período é determinante no desenvolvimento do indivíduo, onde ele ou ela tem uma maior capacidade para o aprendizado de determinadas habilidades, como a habilidade de aprender sua língua materna. Se o ouvido absoluto pode ser desenvolvido durante esta janela tão pequena ligada à aquisição da língua materna, então é possível que o ouvido absoluto seja uma evolução a partir da fala ao invés de ser uma habilidade musical. Estas descobertas mostram que a aquisição da linguagem deve estar mais associada à habilidade musical do que cientistas acreditavam previamente. Esta teoria confirma aquilo que o Dr. Suzuki acreditava, que a habilidade musical se desenvolve da mesma forma que o aprendizado da língua materna.

Dificuldades na aquisição do ouvido absoluto

Mesmo não sendo impossível, é sempre desafiador para um adulto a aprender um segundo idioma, por que a janela para a aprendizagem da língua já acabou. Do mesmo modo, comparando com os adultos, é mais provável que uma criança readquira a habilidade de falar após um dano ou injúria cerebral (9). Cientistas acreditam que isto é devido à janela de aprendizagem. Na intenção de ensinar ouvido absoluto para adultos, algumas pessoas aumentaram sua capacidade de reconhecer notas, mas nenhuma delas chega à taxa de acerto de alguém que tenha ouvido absoluto.

Então, por que aqueles que não falam um idioma tonal desenvolveram ouvido absoluto sem serem expostos ao nome das notas antes de 1 ano de vida? Acredita-se que algumas pessoas têm esta janela de aprendizagem da língua maior, além do primeiro ano de vida, e isto possibilita que estes memorizem os sons um pouco mais velhos, quando ainda eram jovens estudantes de música. Esta predisposição para uma janela de aprendizado maior pode ser associada à genética e possivelmente conectada à organização cerebral. Ouvido absoluto é encontrado geralmente dentro de famílias, e mesmo entre irmãos, sugerindo que exista uma ligação genética para uma janela de aquisição da linguagem excepcionalmente longa. Músicos com ouvido absoluto tendem a possuir uma forma não usual de estrutura cerebral. Foi encontrado que pessoas com ouvido absoluto têm maior assimetria do lado esquerdo da parte do cérebro responsável pelo processamento da fala (10). Novamente, estas descobertas indicam uma conexão entre o ouvido absoluto e o desenvolvimento da linguagem.

E como isso pode afetar pais e professores?

Existe um grande debate entre os músicos sobre o real valor do ouvido absoluto. Alguns dizem que adorariam ter ouvido absoluto, enquanto outros que têm desejariam de não ter. Mesmo que alguns dos grandes músicos sejam conhecidos por ter ouvido absoluto, esta habilidade não torna ninguém melhor do que outros no que diz respeito à performance musical. Além do mais, alguns músicos com ouvido absoluto cometem erros de oitava ao dar nome às notas, ou têm sérios problemas para tocar em ambientes de afinação não estável ou em outras referências (como em A=415Hz na música antiga, por exemplo), e têm dificuldade em tocar em tons não originais. Muitos músicos acreditam que ter um ouvido relativo muito bom, ou entender sobre as distâncias e relações entre as notas, é uma habilidade muito mais útil para se adquirir.

Como pais e professores, é importante entender como as pesquisas que estão sendo feitas em outras áreas fora da música podem ajudar na nossa maneira de ensinar e entender a música. Pesquisas sobre o desenvolvimento do ouvido absoluto relacionando-o com o aprendizado da língua materna fortalecem a idéia do Dr. Suzuki que “a habilidade musical não é um talento inato, mas sim, uma habilidade que pode ser desenvolvida”. É nossa função, como pais e professores, estimular os talentos das crianças, e a entender que toda criança é capaz.

Notas

  1. D. Deutsch, M. Dolson, and T. Henthorn, “Absolute pitch, speech, and tone language: Some experts and a proposed framework,” Music Perception: An interdisciplinary Journal, 21 (2004): 339-356
  2. J. R. Saffron and G.J. Griepentrog, “Absolute pitch in infant auditory learning: Evidence for developmental reorganization”, Developmental Psychology, 37 (2001): 74-85
  3. D. Deutsch, “The puzzleof absolute pitch”, Current directions in Psychological Science, 11 (2002): 200-204
  4. Halpern, A. R. “Memory for the absolute pitch of familiar songs”, Memory and Cognition, 17 (1989): 572-581
  5. Deutsch, Current directions in psychological science, 11
  6. Deutsch, Current directions in psychological science, 11
  7. Deutsch, et al., Music Perception: An interdisciplinary Journal, 21
  8. P. W. Jusczyk, A. D. Friederici, J. Wessels, V. Y. Svenkerud, and A. M. Jusczyk, “Infants’ sensitivity to sound patterns of native language words”, Journal of memory and language, 32 (1993): 402-420
  9. Deutsch, et al., Music Perception: An interdisciplinary Journal, 21
  10. G. Schlaug, L. Janckem, Y. Huang, and H. Steinmetz, “In vivo evidence of structural brain asymmetry in musicians”, Science, 267 (1995): 699-701
  11. K. Miyakazi, “Absolute pitch as inability: Identification of intervals in a tonal context”, Music perception: An Interdisciplinary Journal, 11 (1993): 55-71

Jessica Jenkins DavisJessica Jenkins Davis dirige o programa suzuki de cordas no Meredith College em Raleigh – North Carolina, e é candidata ao doutorado em educação musical na University of North Carolina em Greensboro. Jessica começou seus estudos em San Diego – California, como violinista suzuki. Do rol de professores, incluem Melissa Reardon, Philip Tyler, Mary Gerard e Shirley Stafford. Ela escreveu muitos artigos sobre os benefícios da educação musical, e está empenhada a trazer a alegria da música na vida do maior número de crianças possível.

Para saber mais sobre o Método Suzuki no Brasil, entre em contato com o Centro Suzuki de Educação Musical, pelo endereço http://www.centrosuzuki.com.br/. O Centro Suzuki oferece atualmente cursos de flauta doce, flauta transversal, violino, viola, piano, violão e sensibilização musical para bebês e crianças.

A música é a chave do sucesso?

Encontrei este artigo no site do New York Times, e decidi traduzir e publicá-lo, com o link para a fonte.

http://www.nytimes.com/2013/10/13/opinion/sunday/is-music-the-key-to-success.html

Opinião:
A música é a chave do sucesso?

por JOANNE LIPMAN – tradução Gustavo de Francisco
Publicado em 12 de Outubro de 2013

 

CONDOLEEZZA RICE estudou para ser pianista concertista. Alan Greenspan, ex-presidente do Federal Reserve (Banco Central Americano), foi clarinetista e saxofonista profissional. O multimilionário Bruce Kovner é pianista e estudou na Juilliard.

Ana Parini
Ana Parini

Muitos estudos apontam uma correlação entre o estudo de música e o desempenho acadêmico. Mas e sobre como o estudo sério de música pode ter relação ao sucesso em outras áreas do conhecimento?

Esta conexão não é uma coincidência. Eu sei por que eu perguntei. Fiz esta pergunta aos profissionais do alto escalão das indústrias de tecnologia, do mercado financeiro ou de mídia, todos que haviam se dedicado seriamente à música (muitas vezes desconhecidos) antes de se tornarem o que são hoje. Quase todos eles fizeram uma conexão entre o estudo da música e o próprio sucesso profissional.

Este fenômeno se estende além da associação entre a música e a matemática. Surpreendentemente, muitos destes profissionais de alto desempenho me disseram que a música abre caminhos para o pensamento criativo. E suas experiências sugerem que o estudo de música também desenvolve outras habilidades: colaboração, a habilidade de ouvir, uma maneira de pensar que consegue unir idéias contrárias ou diferentes, o poder de se concentrar no presente e também no futuro simultaneamente.

Será que o estudo de música vai transformar seu filho num Paul Allen, o bilionário co-fundador da Microsoft (guitarrista)? Ou em um Woody Allen (clarinetista)? Provavelmente não. Estes são empreendedores singulares. Porém a maneira que estes e outros visionários que eu comentei tratam a música é intrigante. Assim como a maneira que eles aplicam as lições musicais de concentração e disciplina em novas maneiras de pensar e se comunicar – e até mesmo na solução de problemas.

Procure atentamente e você encontrará músicos no alto escalão de quase todas as indústrias. Woody Allen se apresenta semanalmente em uma banda de jazz. A jornalista de televisão Paula Zahn (cellista) e o chefe da NBC e correspondente da Casa Branca Chuck Todd (trompista) cursaram o ensino médio com bolsas de estudo de música; a Andrea Mitchell da NBC estudou violino para ser musicista profissional. Mr. Allen da Microsoft e o investidor de riscos Roger McNamee, ambos possuem uma banda de rock. Larry Page, co-fundador do Google, tocou saxofone no ensino médio. Steven Spielberg é clarinetista, e é filho de um pianista. O ex-presidente do Banco Mundial James D. Wolfensohn tocou cello no Carnegie Hall.

“Isso não é uma coincidência” diz Sr. Greenspan, que desistiu do clarinete de jazz, mas ainda brinca com seu piano na sua sala de estar. “Posso falar a você como estatístico, a probabilidade disso ser mero acaso é extremamente pequena”. O cauteloso ex-chefe do FED complementa, “Isso é tudo o que você pode julgar sobre os fatos. A pergunta crucial é: por que esta conexão existe?”

Paul Allen oferece uma resposta. Ele diz que a música “fortalece sua confiança na habilidade de criar”. Sr. Allen começou a tocar violino quando tinha 7 anos e mudou para a guitarra quando era adolescente. Ainda nos primeiros dias da Microsoft, ele pegava sua guitarra no fim da maratona programando dias a fio. A música era o análogo emocional ao seu trabalho diário, cada qual canalizando um tipo diferente de impulso criativo. Em ambos, ele diz, “alguma coisa está te empurrando para olhar além do que existe e fazendo você se expressar de uma nova maneira”.

Sr. Todd diz que existe uma conexão entre os anos de prática e competição, e sobre o que ele chama de “busca pela perfeição”. O executivo veterano da propaganda Steve Hayden dá os créditos a seu passado como cellista ao seu comercial da Apple “1984” retratando uma rebelião contra um ditador. “Eu estava pensando em Stravinsky quando eu tive esta idéia” ele diz. Ele acrescenta que seu passado como cellista o ajudou a trabalhar colaborativamente: “Tocar em grupo te ensina, quase literalmente, a tocar bem com os outros, e saber quando você deve solar [liderar] e quando você deve acompanhar [seguir]”.

Para muitos dos altos empreendedores que eu conversei, a musica funciona como uma “linguagem escondida”, como o Sr. Wolfensohn a chama, que aumenta a habilidade de conectar idéias diferentes ou mesmo contraditórias. Quando ele dirigia o Banco Mundial, Sr. Wolfensohn viajou para mais de 100 países, onde geralmente assistia apresentações locais (e ocasionalmente até tocando junto, com um cello emprestado), fato que o ajudou a entender “a cultura das pessoas, diferente do seu faturamento”.

É neste contexto que a conexão tão discutida entre matemática e música mais aparece. Ambas são meios de expressão. Bruce Kovner, o fundador do fundo multimercado da Caxton Associates e presidente do conselho da Juilliard, diz que ele vê similaridades entre tocar piano e em estratégia de investimentos; como ele diz, ambos “estão relacionados com reconhecimento de padrões, e algumas pessoas estendem estes paradigmas entre diferentes sentidos”

Ambos Sr. Kovner e o pianista Robert Taub descrevem um tipo de sinestesia – eles percebem padrões de uma maneira tridimensional. Sr. Taub, que ganhou fama pelas suas gravações de Beethoven e então fundou uma empresa de software voltado à música, MuseAmi, diz que quando ele toca, ele pode “visualizar todas as notas e suas inter-relações”, uma habilidade que traduz mentalmente como se estivesse construindo “conexões múltiplas entre muitas esferas”.

Para outros com quem conversei, a paixão pela música é mais notável que seu talento. Woody Allen me disse abruptamente, “Eu não sou um músico comprometido. Eu sou muito ocupado pelo fato de participar [como ator] de meus filmes”.

Sr. Allen vê a música como diversão, desconectada do seu trabalho diário. Ele se caracteriza como “um jogador de tênis de fim de semana, que vai ao clube uma vez por semana para jogar. Eu particularmente não tenho bom ouvido ou um senso rítmico de tempo. Na comédia, eu aprendi a ter um bom instinto para o ritmo. Na música, não tenho, realmente”.

Ainda assim, ele toca clarinete pelo menos meia hora todos os dias, por que quem toca instrumento de sopro perde a embocadura (posição da boca) se não tocarem: “Se você quer tocar, você deve praticar. Eu tenho que tocar todos os dias para ser tão ruim como eu sou”. Ele toca em público regularmente, inclusive fazendo turnês internacionais com sua banda de jazz New Orleans. “Eu nunca imaginei que estaria tocando em salas de concerto de outros países para 5000 ou 6000 pessoas”, ele diz. “Devo dizer, que inesperadamente, isso enriqueceu minha vida tremendamente”.

Música traz equilíbrio, explica Sr. Wolfensohn, que começou a tocar cello quando adulto. “Você não está tentando ganhar nenhuma corrida, ou ser o líder disto ou daquilo. Você está curtindo por causa da satisfação e alegria que a música te traz, que é completamente sem relação com o seu status profissional”.

Para Roger McNamee, conhecido pelo seu investimento no início do Facebook, “música e tecnologia têm convergido” ele diz. Ele se tornou expert no Facebook usando a rede social para promover sua banda, Moonalice, e agora está se dedicando em filmar e disponibilizar seus shows em tempo real pela internet. Ele diz que músicos e profissionais de alta performance compartilham “a necessidade quase desesperada de mergulhar fundo”. Esta capacidade de obsessão parece unir os músicos e profissionais de alta performance em qualquer campo de atuação.

Sra. Zahn lembra de passar quatro horas por dia “enterrada em salas de estudo apertadas tentando aperfeiçoar uma frase” em seu cello. Sr. Todd, agora com 41 anos, contou em detalhes sobre seu recital solo aos 17 anos de idade quando teve a segunda melhor nota ao invés da melhor nota – enquanto ele continuava tocando a primeira trompa na Orquestra Estadual da Florida.

“Eu sempre acreditei que a razão pela qual eu estava à frente era por trabalhar mais que as outras pessoas”, ele diz. É uma habilidade aprendida “tocando aquele solo mais de uma vez, trabalhando aquela pequena sessão mais uma vez”, e isso se traduz em “trabalhar repetindo alguma coisa de novo e de novo, com checagem dupla ou mesmo tripla”. Ele acrescenta, “Não existe nada como a música para te ensinar que eventualmente se você trabalhar duro, você melhora. Você pode ver os resultados”.

Aqui uma observação que merece destaque em um tempo no qual a música como uma carreira séria – e a educação musical como um todo – está em declínio neste país.

Considere as qualidades que estes grandes empreendedores disseram que a música ajudou a desenvolver: colaboração, criatividade, disciplina e a qualidade em reconciliar idéias conflitantes. Todas são qualidades que não são encontradas facilmente na vida pública. A música pode não te tornar um gênio, ou rico, ou mesmo uma pessoa melhor. Porém, ela te ajuda no treinamento de pensar diferente, de entender pontos de vistas diferentes – e o mais importante, a ter prazer escutando.

Joanne Lipman é co-autora, junto com Melanie Kupchynsky, do livro “Strings Attached: One Tough Teacher and the Gift of Great Expectations.”

Uma versão desta matéria aparece na edição impressa em 13 de Outubro de 2013, na página SR9 da edição do New York com o título “A música é a chave do sucesso?”

Artigo na revista American Recorder

American Recorder - edição de inverno - 2013

É com grande prazer que comunico aos nossos leitores que os artigos publicados em nosso blog estão sendo solicitados para tradução em outras línguas!

Acaba de ser publicado na edição de inverno de 2013 da revista American Recorder, uma publicação da American Recorder Society, o artigo que postei aqui sobre cuidados básicos com a flauta doce. Este será o primeiro de uma série, que serão publicados na revista americana.

Para quem quer ler o artigo na íntegra em inglês, basta acessar o link: American Recorder – basic care

E para as pessoas que ainda não conhecem os posts publicados aqui, segue a lista abaixo:

Pesquisas, artigos e textos

Inalador ou Exalador?

Navegando pelo universo da flauta doce

Cuidados básicos com sua flauta doce

Devo passar óleo nas minhas flautas doces? Como devo fazer?

Como devo limpar minha flauta de madeira?

Afinação – a prática leva à perfeição

Afinação – acabando com os mitos

Escolhendo uma flauta doce – Passo a passo

Escolhendo uma flauta doce – Critérios qualitativos

Dicas para escolher o melhor professor

Como a flauta funciona

Como a flauta funciona

Como o ar vibra

 

A imagem acima mostra como o som da flauta doce é produzido. Este vídeo foi produzido por Avraham Hirschberg, na Universidade de Utrecht. Uma explicação detalhada pode ser lida em seu artigo, em holandês, no endereço http://www.flute-a-bec.com/miko-fluit.html.

A flauta doce é um instrumento da família dos sopros, da família das madeiras, e como tal funciona pela vibração da coluna de ar dentro do tubo do instrumento. Essa vibração é produzida da mesma forma que em um apito: existe um canal que dirige o fluxo de ar ao encontro de uma parede que divide o fluxo em dois, chamaremos esta parede de lábio, e o lábio se encontra na janela da flauta. Como vemos no vídeo acima, quando o ar se divide ele se movimenta para dentro e para fora do instrumento, produzindo uma vibração ou oscilação.

Quando o fluxo entra dentro da flauta, aumenta a pressão do ar dentro do instrumento, e imediatamente o ar que está dentro do tubo tenta escapar tanto pelos furos como pela janela. Assim que consegue escapar, a pressão interna diminui, fazendo com que mais ar da janela entre para dentro novamente, gerando assim uma oscilação, que produz o som da flauta. Repare que a flauta permanece estática, isto é, sem vibração, enquanto apenas o ar vibra.

Quanto maior o tubo mais lento é este processo, e por isso o som produzido é mais grave, isto é, tem uma frequência menor. Se o tubo é curto a frequência é maior, e por isso o som é mais agudo.

Pêndulo de NewtonDesta forma, as moléculas de ar vibram dentro da flauta, da mesma forma que o famoso Pêndulo de Newton, fazendo que o ar entre e saia dos furos ou da janela de forma sincronizada.

Podemos fazer aqui uma analogia: o ar dentro da flauta vibra como uma corda do violino, o ar que assopramos funciona como o arco do violino, e o ar que já estava dentro da flauta vibra como sua corda. O tamanho da corda é igual ao tamanho do tubo, desde a janela até o primeiro furo completamente aberto.

Podemos imaginar a coluna de ar variando seu tamanho conforme mudamos o dedilhado, mas quando temos dedilhados de forquilhas ou dedos cruzados, fica difícil imaginar como fica a coluna de ar, por isso fiz o gráfico abaixo (clique para ver maior).

A coluna de ar está desenhada aqui em duas cores. O vermelho representa onde o ar se movimenta mais e por isso a pressão é menor; o amarelo representa o local onde o ar se movimenta menos e há maior pressão. Normalmente as áreas em vermelho coincidem com os furos abertos, pois o ar pode se mover para fora e para dentro do instrumento.

Como a flauta funciona - Coluna de ar

Repare que nas notas sem dedilhado de forquilha (figuras 1, 2 e 4), o ar vibra até o primeiro orifício aberto, deixando o comprimento da coluna de ar muito nítido. Nas notas de forquilha (figura 3), a coluna de ar é “esticada” um pouco mais, baixando a afinação da nota imediatamente superior, que neste caso seria um sol (no dedilhado da soprano) com sua afinação abaixada até o fá sustenido.

Algo curioso acontece quando chegamos na segunda oitava (figura 5), pois aparecem duas “ondas”, isto é, a coluna de ar se divide em dois, e por isso, temos o som correspondente à oitava acima da nota fundamental. O mesmo fenômeno acontece quando dividimos a corda do violino em dois. Repare que o comprimento é exatamente o mesmo da nota oitava abaixo (figura 2), mas como a coluna está dividida em 2, temos uma freqüência duas vezes maior ou mais aguda.

Em seguida, temos outra coisa curiosa quando chegamos no 3.o harmônico – a nota si agudo na soprano, ou mi agudo na contralto, representada na figura 6. Reparem que o dedilhado é muito parecido com o mi agudo (soprano) ou lá agudo (contralto) exceto pelo dedo 3. Com este dedo aberto, formam-se 3 ondas, ou o terceiro harmônico.

Quando tocamos as notas ainda mais agudas, chegamos no 4.o harmônico, isto é, 2 oitavas acima da nota fundamental, representado na figura 7 com o dedilhado da nota ré na soprano ou sol na contralto, ambas na terceira oitava.

Quando voltamos a observar o vídeo no início deste artigo, podemos imaginar o que acontece quando alteramos a intensidade do ar: se sopramos mais, a velocidade é maior e a vibração aumenta a frequência, e se sopramos menos a vibração diminui junto com a frequência. Assim, percebemos que a afinação está diretamente relacionada com a nossa respiração e o controle do ar, e quanto é importante para os flautistas aprenderem a soprar e controlar o som. O ar é para o flautista o mesmo que o arco é para o violinista, e da mesma forma, o controle do ar – respiração, articulação, sustentação – é a parte mais difícil para o flautista, assim como o controle do arco é a parte mais difícil para o violinista. Afinal, em ambos os casos, o som é produzido através destes meios.

Em suma, quando queremos mudar a dinâmica da música, temos que recorrer a dedilhados alternativos para compensar esta mudança de afinação – afinal ninguém deseja tocar desafinado – e a compreensão de como a flauta funciona nos ajuda a descobrir novos dedilhados para as mesmas notas, de forma que tenhamos mais possibilidades interpretativas que vão muito além de tocar as notas certas no tempo certo.

Ainda sobre dedilhados, sugiro a visita do site http://www.recorder-fingerings.com/br/index.php, onde é possível consultar uma infinidade de diferentes dedilhados, para diferentes fabricantes, épocas ou tipos de flautas doces.

A flauta quebrou!

A flauta quebrou!

Esta semana, tivemos uma surpresa. um aluno chegou na aula triste, com a mãe chateada, mostrando a flauta quebrada. “O que aconteceu?” perguntamos. “Deixei a flauta em cima do sofá, e quando voltei estava rachada e, depois de pouco tempo, quebrada”.

Acidentes acontecem, e alguns deles podem ter suas consequências minimizadas. Mas deixo aqui registrado para que todos vejam como é importante cuidar do seu instrumento…

Recebi esta notícia por telefone, não sabia como estava o instrumento. Apenas me disseram que o pé da flauta havia quebrado em dois. Fiquei imaginando como estaria o local rompido, se a madeira havia entortado (caso comum quando existem tensões internas na madeira), ou se a madeira se rompeu em um veio, sem entortar. Ainda haveria a possibilidade de ter lascado mais alguma parte, faltando alguns pedaços.

Quando a flauta chegou em minhas mãos, pude avaliar melhor. Aparentemente não haviam pedaços faltando, e a rachadura seguia exatamente a linha dos veios. Não havia deformações na madeira pelas tensões internas, algo muito bom, pois isso poderia inviabilizar a reparação.

Com isso, parti para a limpeza da madeira, para remover todo o óleo e outras substâncias que poderiam impedir a colagem. Foram 3 dias de secagem.

Depois disso, resolvi fazer a foto acima, com a flauta quebrada em cima do sofá, uma paródia visual sobre o ocorrido. Um episódio desta magnitude precisa ser registrado, não é mesmo? Ainda mais importante, para que os flautistas entendam o que pode acontecer quando não cuidam de sua flauta.

Depois da colagemParti para a colagem. Neste caso, a cola mais recomendada é a cola epóxi, pois é uma cola flexível e muito resistente. Super Bonder poderia ser usada apenas em caso de uma rachadura que não chegou a romper completamente, por ser uma cola de alta penetração e capilaridade, mas sua desvantagem é não ser flexível, e, após algum tempo, pode romper novamente por causa das variações da madeira devido à umidade e temperatura.

Neste momento fiquei bem entusiasmado, pois percebi que esta história poderia acabar bem. A colagem ficou muito boa, sem falhas ou vazamentos. Por isso, resolvi registrar novamente este grande momento, para que todo o processo fosse documentado.

ColagemO próximo passo seria remover todo o excesso da cola, mas só poderia ser feito no dia seguinte, após a cola haver secado completamente.

Usando um bisturi, fui removendo lentamente e cuidadosamente cada gota de cola, dentro e fora do tubo, para que a emenda ficasse praticamente invisível.

O resultado do trabalho? Bem, este pode ser visto no final deste post. Mas devo dizer que este aluno teve muita sorte, pois a rachadura não envergou a madeira, o que teria tornado impossível a restauração. Além disso, o encaixe desta flauta sempre será muito sensível, podendo abrir novamente caso o manuseio não seja feito com muito cuidado a partir de agora. E caso a rachadura se abra novamente, a colagem ficará cada vez mais difícil de ser refeita.

Mas a história não acaba por aqui. Entrei em contato com a Mollenhauer, já que eu iria viajar até a fábrica dali a um mês, e contei toda esta história. Eles foram super atenciosos, e pediram que eu levasse o pé da flauta rachado, e eles iriam substituí-lo por um novo. Ao chegar na fábrica, nem tive que entregar o rachado, eles apenas usaram ele para selecionar um outro com a cor exata da madeira, para evitar que a flauta ficasse com um pé de outra cor devido às mudanças da madeira, e tudo sem custo algum. No final, o aluno ficou com 2 pés de flauta!

Moral da história: sofá não é lugar de instrumento musical. Eu mesmo já passei por isso quando criança, quando deixei a flauta em uma cadeira e alguém sentou em cima, tive sorte de isso acontecer em uma flauta de plástico ao invés de uma excelente flauta soprano de grenadilla (como este caso). Quando acontece conosco, o sentimento de perda é o mesmo, independente do valor do instrumento.

Reparo finalizado

Dicas para escolher o melhor professor

professor Johann Joachim Quantz

Tenho recebido muitas mensagens perguntando coisas como:
– Como escolher um bom professor?
– Como sei se determinado professor é realmente bom?
– Quem é um bom professor?
– Com quem devo estudar?

Estas perguntas, muitas vezes podem nos colocar numa “sinuca de bico”, pois nossa resposta sempre estará vinculada às nossas próprias experiências pessoais, sejam elas boas ou ruins. Por isso, hoje ao reler um tratado sobre música do séc. XVIII, “On playing the flute” publicado no ano de 1752 por Johann Joachim Quantz (1697-1773), encontrei alguns critérios bem imparciais que respondem diversas destas perguntas. O livro original (com versões em alemão, francês ou inglês) pode ser encontrado no IMSLP. Neste tratado, Quantz se coloca na posição de grande mestre, ensinando passo a passo como tocar flauta, explicando questões referentes à estilo, musicalidade, fraseado, ornamentação, entre outras coisas. Por isso, traduzi o trecho que trata da escolha de um bom professor, o qual coloco a seguir.

As palavras não são minhas, e foram escritas há mais de 250 anos, no entanto, permanecem muito atuais, afinal foram escritas com muita sabedoria.

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Escolhendo uma flauta doce – Critérios qualitativos

Escolhendo uma nova flautaTenho tido muitas oportunidades para experimentar diferentes instrumentos, sejam novos ou usados, de fábrica ou de luthiers, de diferentes modelos e madeiras. Assim, desenvolvi um método pessoal para avaliar instrumentos, que tentarei descrever o critério usado aqui, para que possa servir de guia para quem for comprar uma nova flauta.

Critérios

Os critérios, em ordem de importância, são:

  • afinação (relação de oitavas, terças e quintas, principalmente)
  • timbre
  • estabilidade
  • resistência
  • quantidade de ar
  • tipo de madeira

Ao experimentar uma flauta pela primeira vez, costumo tocar escalas e arpejos, para que possa ouvir atentamente o som que o instrumento produz. Enquanto faço isso, estou também atento à sensação que o instrumento me passa ao tocar, especialmente na quantidade de ar necessária para obter um som redondo e limpo, na resposta à articulação, e na resistência que a flauta impõe ao meu sopro.

Afinação

O primeiro teste é com as oitavas: experimento todas as oitavas da flauta, ouvindo atentamente se as oitavas estão perfeitamente afinadas, se são “estreitas” ou “grandes”. Para isso eu toco C – C, D – D, E – E, e assim por diante. Depois de ter tocado todas as notas naturais até chegar à 3.a oitava, volto do início fazendo as notas alteradas: C# – C#, Eb – Eb, F# – F#, etc. Se a relação de oitavas não estiver afinada, não há como corrigir pois é um problema nas dimensões internas do tubo do instrumento, e neste caso eu evito este instrumento.

O segundo teste é tocar arpejos, normalmente também toco arpejos com 7.a, em toda a extensão do instrumento. Aqui fico atento na afinação das terças e quintas, e toco com os dedilhados alternativos diferenciando as notas enharmônicas (como Fá # e Sol b por exemplo).

O terceiro teste é mais prático, toco alguma sonata ou música conhecida. Algumas vezes só consigo notar alguma nota desafinada ao tocar uma música que já está memorizada.

Publiquei dois artigos aqui mesmo neste blog sobre o assunto afinação, e é muito importante ler estes artigos para entender melhor o que considero uma nota afinada ou desafinada: Afinação – acabando com os mitos e Afinação – a prática leva à perfeição.

Timbre

Enquanto estava experimentando a afinação, já estava atento ao timbre da flauta, ou podemos também chamar de voz (ou voicing no termo em inglês). Este é o ponto mais delicado do instrumento, que faz cada flauta realmente única, e por isso é muito difícil explicar em palavras.

Eu sempre busco um instrumento com timbre limpo, pouco agressivo, que possibilite certa mudança de coloração sonora. Também gosto de instrumentos que possibilitem um grande volume, sem que o som fique áspero.

É neste momento que experimento as notas “fracas” e “fortes”, isto é, as notas de forquilha (como o Fá, Si b, Sol # na flauta soprano), as notas abertas (como o ré médio e o si natural na flauta soprano) e as notas fechadas (Dó, Ré, Mi graves na flauta soprano). Cada dedilhado tem um timbre característico, as notas abertas costumam ter a afinação instável e timbre claro, as notas fechadas tem uma resistência maior e som fechado, e as notas de forquilha costumam ter a afinação mais estável e som velado. Estas diferenças existem em todos instrumentos, mas algumas flautas possuem diferenças muito gritantes para diferentes dedilhados, o que prejudica o equilíbrio do som.

Muito importante notar sobre a facilidade em tocar todo o registro do instrumento, especialmente nas notas mais agudas (fá agudo – 3.a oitava – na flauta contralto, ou dó agudo na soprano). Estas notas não podem soar com chiado, elas devem ter o som limpo, e ataque preciso. Caso não esteja, provavelmente o bloco está alto ou baixo demais.

Canal de arAcima coloco uma foto do canal de ar de uma flauta. Ao olhar pelo canal com a flauta direcionada a uma fonte de luz, devemos enxergar algo parecido com o que mostro nesta foto, uma meia lua muito luminosa que é formada pela luz que entra pelo tubo por baixo da janela. Se vemos muita luz, é por que o bloco está baixo demais, e se não vemos luz é porque o bloco está alto demais. Se a flauta for de luthier, ele pode ajustar o bloco para que fique na altura correta.

Resistência

Já publiquei um artigo, traduzido do site da Adriana Breukink, sobre os tipos de respiração inalador e exalador, ou também conhecido como lunar e solar. Este artigo explica sobre este critério, e pode ser lido aqui: Inalador ou Exalador?.

Eu sempre busco instrumentos com maior resistência, na qual eu possa fazer pressão e assoprar bastante para tocar, seguindo o tipo solar ou exalador.

É bom escolher instrumentos adequados ao seu tipo, por isso recomendo a leitura do artigo.

Quantidade de ar

zefiroAlgumas flautas exigem mais ar, outras menos. Além disso, alguns instrumentos permitem uma mudança maior da coluna de ar sem que isso afete a afinação ou timbre, outros instrumentos são mais delicados neste aspecto.

Ao experimentar um instrumento, procuro que o instrumento responda quando assopro de forma confortável, sem que precise assoprar muito ou conter o ar. Além disso, também procuro instrumentos que permitem maior tolerância na variação da coluna de ar sem que isso afete a afinação e o timbre.

Estabilidade

Esta é uma característica muito importante, porém muito difícil de avaliar quando tocamos um instrumento por pouco tempo. Me refiro aqui às mudanças no som que são causadas pela mudança no clima ou após tocarmos por períodos longos no mesmo instrumento.

Esta é a única característica na qual os instrumentos de resina costumam ser melhores que os instrumentos de madeira. Mesmo assim, as flautas de plástico costumam entopir muito mais que as de madeira.

Uma coisa que devo comentar aqui, é que algumas flautas de luthier costumam ter ligeiras alterações na sonoridade após cerca de um ano de uso, e depois deste período de 1 ano, devem ser enviadas de volta ao construtor para que faça uma revisão no instrumento, com os ajustes necessários para que a flauta tenha a sua melhor performance. As flautas de fábrica são construídas de outra forma, e não precisam de manutenção após 1 ano.

Tipo de madeira

grenadillaAs flautas são construídas de vários tipos de madeira, onde posso citar algumas madeiras brasileiras como ipê, jacarandá e conduru, e outras madeiras importadas como grenadilha, buxo (boxwood), pereira (pearwood), cerejeira (cherry wood), jacarandá europeu (rosewood) e muitas outras, e até de materiais mais nobres, como marfim.

Ainda no quesito estabilidade, mas já falando dos tipos de madeira, as flautas construídas com madeira porosa e/ou pouco densa, como pereira e maple, costumam ser menos estáveis que as flautas com madeira mais densa e dura, como grenadilha e buxo.

Coloco este critério como último, pois as diferentes madeiras não influenciam diretamente no som do instrumento como muitos podem pensar, mas existe uma influência indireta. A textura da madeira, a estabilidade diante de mudanças da temperatura e umidade e a facilidade que a madeira oferece ao torneamento influenciam muito mais na qualidade do instrumento do que a ressonância da madeira ao som produzido. Isto acontece por que em qualquer instrumento de sopro, a vibração do ar é muito mais significativa do que a vibração do instrumento.

Por todas estas razões, sempre que puder, escolha madeiras mais densas e com fibras mais próximas e menos porosas. Nestes quesitos, as melhores são o buxo ou boxwood europeu, grenadilha, oliva, jacarandá da Bahia, conduru e algumas sub-espécies de ipê.

Atualizado em 9 de Junho de 2014:
Ainda com relação a madeira, já ouvi falar de algumas pessoas com fortes alergias a alguns tipos de madeiras, por isso escrevo aqui uma história que chegou ao meu conhecimento. Katherine White, americana, e idealizadora do método suzuki de flauta doce, tinha alergia a várias madeiras e por isso pediu para uma fábrica de flautas um pequeno pedaço de cada madeira disponível. Ela colou cada um dos pedaços em sua pele com um esparadrapo por algumas horas, para verificar qual madeira ela seria menos alérgica. Depois do teste, ela descobriu que ela não mostrava nenhum sinal alérgico à oliveira, e a partir daí passou a usar apenas flautas de oliva. Fica a recomendação a esta madeira não só para quem é alérgico, mas também por ser uma excelente madeira para o clima brasileiro.

Instrumentos usados

Todos estes critérios citados devem ser analisados ao comprar um instrumento de segunda mão, e além disso devemos ter em mente algumas outras coisas que podem pesar a favor ou contra um instrumento usado.

Ao pegar um instrumento usado, a primeira coisa que me chama atenção é o estado geral, a limpeza, se há danos na janela ou em qualquer parte do bocal, nos encaixes, nos furos, e se há qualquer tipo de rachadura ou veio da madeira mais propenso à rachaduras, e no caso de flautas que possuem chaves, o perfeito funcionamento das mesmas (me refiro à vedação dos furos, lubrificação dos mecanismos, estado geral das chaves). Isso tudo pode indicar o cuidado que o último dono teve com o instrumento.

Dentre tudo isso, especial cuidado com danos na janela e no bloco, rachaduras e chaves mal conservadas, pois isso afeta diretamente no som do instrumento. Não importa se a flauta é bonita quando não toca direito, não é mesmo?

Há outro fator que deve ser considerado: a procedência do instrumento. Quero dizer aqui o luthier ou o fabricante, quanto tempo que a flauta foi construída, quanto tempo a flauta ficou sendo usada, quanto tempo ficou parada sem ninguém tocar ou empoeirando em um armário. Conheço algumas flautas doces que valiam algo em torno de 2.000 euros, que imediatamente após a morte de seu luthier, passaram a valer 20.000 euros – e estas não são as flautas mais caras que eu tenho visto.

O fato da flauta ficar empoeirando em um armário também afeta seu som, pois a madeira seca e o corpo muda suas dimensões, alterando drasticamente a afinação e também o timbre, fato que algumas vezes é revertido por uma manutenção com o luthier, ou simplesmente com uma limpeza e óleo (já explicado no artigo Como devo limpar minha flauta de madeira? e também no artigo Devo passar óleo nas minhas flautas doces? Como devo fazer?), mas algumas vezes o processo de deterioração é irreversível, especialmente quando existem fungos ou cupins na madeira.

Existem algumas vantagens em comprar instrumentos usados, especialmente quando compramos de flautistas que conhecemos e que são atuantes. Instrumentos novos, como já mencionei anteriormente, precisam ser amaciados e normalmente precisam ser levados ao luthier novamente após cerca de 1 ano de uso. Instrumentos usados já passaram por este processo e geralmente são mais estáveis, mas para isso o último dono deve ter passado óleo e cuidado bem do instrumento.

Em qualquer dos casos, um instrumento musical serve para fazer música, e por esta razão, o principal critério deve ser a qualidade sonora, e tudo o que interfere diretamente ou indiretamente na qualidade sonora.

Escolhendo uma flauta doce – Passo a passo

Diferentes flautas

Muitos flautistas me perguntam como escolher um bom instrumento, e por isso, decidi publicar quais os critérios que eu uso quando tenho a oportunidade de escolher o melhor dentre um conjunto de flautas.

Temos que ter em mente que ao escolher instrumentos musicais, os critérios mais importantes são os critérios musicais. Vejo muitas pessoas escolherem instrumentos por serem mais baratos, por serem ecológicos, por serem mais resistentes, mais bonitos, por ouvir o vendedor recomendar, por que acompanham o livro ou CD, por serem vendidos na loja da esquina ou mesmo em papelarias, mas nenhum destes critérios é um critério musical, nenhum destes critérios vai garantir que você compre um bom instrumento.

Madeira ou resina?

A flauta doce é um instrumento da família das madeiras, assim como a flauta transversal, a clarineta, o oboé, o fagote e o saxofone. Mas a flauta transversal é feita de metal, e o sax também! É verdade, nos dias de hoje, mas nem sempre foi assim; todos os instrumentos da família das madeiras (exceto o saxofone) eram feitos de madeira na sua origem. Além disso, esta família dentre as outras dos instrumentos de sopros se diferencia por ter seu som produzido em tubos perfurados, onde ao abrir cada um dos furos a coluna de ar muda seu comprimento, mudando assim a nota produzida. Nos instrumentos de metais, por exemplo o trompete, trompa, bombardino, trombone e tuba, não existem furos no corpo do instrumento.

Podemos dizer que até a segunda guerra mundial, não existiam flautas doces feitas de plástico ou resina. Naquela época, a flauta doce estava sendo re-descoberta, através de pesquisas dos instrumentos antigos que não eram mais utilizados, como o cravo e a viola da gamba, e a flauta doce passou a ser utilizada como instrumento de musicalização por ser um instrumento de construção menos complexa e menor em tamanho do que o piano ou violino, por exemplo.

Segundo Edgar Hunt, as primeiras flautas de plástico (acetato de celulose) começaram a ser produzidas no meio da segunda guerra mundial pela Schott & Co, em meados de 1941, e eram enviadas para os prisioneiros de guerra alemães. Acho que o plano era dominar o mundo! (brincadeira…)

A partir daí, muitos outros fabricantes começaram a produção de flautas doces de plástico ou resina. Dolmetch, John Grey & Sons, Lewis & Scott Mfg. Co. são alguns dos fabricantes desta época, que se aventuraram a produzir flautas doces. Todos estes estavam mais interessados na produção em massa de instrumentos baratos do que na melhoria da qualidade destes instrumentos, e infelizmente este pensamento perdura até hoje quando o assunto é flauta doce de plástico ou resina.

“Hoje em dia, os designers dos fabricantes de flauta doce voltados para o público amador e escolar continuam a produzir flautas doces com som mais brando e parecido com o da flauta transversal do que as flautas originais históricas do séc. XVIII em que se baseiam. No entanto, estas flautas doces neo-barrocas são essencialmente instrumentos solistas, e são inadequados para tocarem juntos em conjuntos de flautas doces ou consorts. Como veremos, estes instrumentos exigem uma técnica de fato muito sofisticada, pois o timbre e afinação são apenas aceitáveis para alguns ouvintes, mas não aceitáveis para pessoas um pouco mais exigentes. Quando tocadas em conjunto por crianças ou amadores adultos, geralmente produzem som áspero e dissonante. O modelo de flauta doce mais adequado para utilização por crianças e amadores é certamente a flauta renascentista, que é um instrumento concebido para tocar em conjunto e misturar o som com os outros instrumentos.
Trecho retirado do artigo “Instrumento de tortura ou instrumento musical?
por: Nicholas S. Lander
fonte: http://www.recorderhomepage.net/torture2.html
tradução: Gustavo de Francisco

Posso dizer que a maioria dos instrumentos de plástico ou resina encontrados em larga escala no Brasil são apenas brinquedos, ao invés de instrumentos musicais. Existem alguns modelos, de alguns fabricantes, que são adequados à iniciação musical e podem ser usados por quem começa a estudar flauta doce.

No Brasil, as flautas doces de resina da Yamaha são as mais encontradas em lojas de instrumentos musicais, mas a Yamaha não é a única fabricante; além dela a Zen-On e Aulos também fazem flautas de resina com qualidade similar ou melhor que Yamaha, porém não têm distribuição em larga escala em nosso país. Em minha opinião, as flautas barrocas da yamaha da série 300, aquelas em 2 cores ou com corpo imitando madeira, são flautas adequadas e baratas para iniciar o estudo do instrumento, começar com um instrumento ainda mais barato pode prejudicar o estudo, pois a má qualidade do instrumento interfere diretamente no aprendizado. Para aqueles que pretendem seguir estudando seriamente, é necessário usar um bom instrumento de madeira e esquecer qualquer instrumento de plástico ou resina.

Dedilhado: barroco ou germânico?

Muita gente pergunta qual dedilhado é “melhor” ou mais adequado: o barroco ou germânico. Primeiro vamos às diferenças:

Barroco Germânico
A nota fá tem dedilhado de forquilha A nota fá tem dedilhado simplificado
Notas como Fá # e Sol # tem dedilhado mais simples Estas notas tem dedilhado mais complexo, e geralmente são desafinadas
A flauta possui sonoridade mais equilibrada, e timbre mais aveludado Sonoridade desequlibrada, e afinação comprometida

Um pouco de história: em meados de 1920 – 1930, quando a flauta doce estava começando a ser pesquisada depois de um longo período esquecida, um alemão que tocava flauta transversal teve contato com uma flauta doce histórica, produzida no séc. XVIII, ou seja, uma flauta barroca. Ao tentar tocar esta flauta, percebeu que a nota fá não era “afinada” como ele esperava, mas ele não se deu conta que o dedilhado desta nota na flauta doce era diferente do dedilhado que ele já estava acostumado na flauta transversal. Como ele sabia construir instrumentos, alterou o diâmetro dos furos para que o fá pudesse ser tocado conforme ele já estava acostumado. Desta forma nasceu o dedilhado germânico (ou alemão).

Algumas pessoas argumentam que ele sabia exatamente o que estava fazendo, pois tinha interesse em facilitar o estudo do instrumento para crianças que estudavam flauta doce e que assim pudessem mudar de instrumento e tocar flauta transversal, clarineta ou oboé no futuro, porém este argumento é muito fraco pois, embora sejam parecidos, cada um destes instrumentos têm dedilhados diferentes.

A mudança no diâmetro dos furos trouxe uma mudança acústica nas novas flautas [germânicas], que quando comparadas com as flautas barrocas, têm o timbre mais claro e áspero além de geralmente desafinadas, enquanto as barrocas costumam ter som mais homogêneo e escuro, e mais afinadas.

Além das mudanças no som, isto trouxe outras complicações: ao alterar os furos para facilitar a nota fá, o dedilhado de outras notas também mudou. Tanto o fá # como o sol # tiveram seu dedilhado alterado para algo mais complicado.

Resumo: a flauta germânica tem a nota fá “simplificada”, mas para isso tem seu som piorado e outras notas mais complicadas quando comparada com a barroca. Se pretendemos fazer música boa aos nossos ouvidos, precisamos procurar o melhor som possível, por isso devemos deixar de lado qualquer instrumento que não seja adequado a este objetivo. Se a flauta barroca tem som melhor e mais afinado que a germânica, devemos escolher a barroca, sempre.

Barroco ou GermânicoEncontrei a imagem acima no site da Yamaha, mostrando como distinguir uma flauta barroca (à direita) de uma germânica (à esquerda). Uma mudança aparentemente pequena no instrumento, mas que causa uma grande mudança na qualidade sonora.

“Ainda bem que o dedilhado germânico nunca foi largamente utilizado fora da Alemanha, Áustria e Suíça. Mesmo nestes países, as flautas germânicas tem sido deixadas de lado nos últimos 50 anos devido ao aumento da percepção das falhas acústicas destes instrumentos. Relativamente, são pouquíssimos professores que continuam a usar estes instrumentos. Alguns fabricantes europeus, que no passado faziam flautas com ambos os dedilhados, nos últimos anos reduziram a produção dos instrumentos germânicos, e apenas disponibilizam flautas germânicas em um ou dois modelos mais baratos e voltados apenas para estudantes iniciantes”.
Trecho retirado do artigo “Sistemas de dedilhados na flauta doce – o bom, o mau e o feioso”
fonte: http://www.aswltd.com/finger.htm
Tradução: Gustavo de Francisco

Além do dedilhado barroco (inglês) e o dedilhado germânico (alemão), existem flautas doces com outros padrões de dedilhados. O que chamamos hoje de dedilhado barroco, é o dedilhado mais próximo do que era usado nas flautas doces barrocas, ou seja, as flautas produzidas nos séc. XVII e XVIII, porém estas flautas históricas geralmente tinham os furos menores, de forma que algumas notas tinham dedilhados diferentes dos padronizados hoje em dia.

Podemos separar então os dedilhados em 4 grandes categorias, sendo as duas primeiras as mais comuns encontradas nas flautas de fábrica, mas é importante saber que existem flautas, geralmente feitas por luthiers, que usam outros tipos de dedilhado:

  • Germânico (ou alemão) – adaptação moderna alemã do dedilhado barroco histórico.
  • Barroco (ou inglês) – adaptação moderna inglesa do dedilhado barroco histórico. É aceito como padrão mundial hoje em dia.
  • Barroco histórico – encontrado nas flautas históricas barrocas ou cópias destes instrumentos. O dedilhado varia ligeiramente de instrumento para instrumento.
  • Renascentista – encontrado nas flautas históricas anteriores a 1650, modelos praetorius, bassano, kynseker, etc. O dedilhado pode variar de instrumento para instrumento.

É possível consultar o dedilhado de vários modelos de flauta doce no site www.recorder-fingerings.com.

Modelos

Modelos

Quando decidimos comprar uma nova flauta, primeiro pensamos em qual flauta devemos comprar. Geralmente pensamos: preciso de uma nova flauta soprano, ou uma nova contralto, ou uma tenor… Mas isso não é suficiente pois existem flautas sopranos de diferentes modelos, assim como contraltos, e tenores…

Ao visitar a página da Mollenhauer, por exemplo, encontraremos os modelos Denner, Dream Recorder, Kynseker, as flautas harmônicas Tarasov, as modernas Helder, e outras mais. E AGORA? O QUE FAZER???

Geralmente escolhemos os instrumentos de acordo com o repertório que iremos tocar. Como o repertório mais extenso da flauta doce é o repertório barroco, com muitas sonatas e concertos de compositores como Telemann, Vivaldi, Haendel, Bach e outros, a flauta barroca é a que todo flautista deve ter, antes de pensar em investir em um segundo instrumento.

A família Denner foi uma família de luthiers, que viveu no séc. XVIII e fabricava instrumentos de sopro: flautas doces, traversos, oboés entre outros. Todos instrumentos com este nome (modelo Denner) são instrumentos barrocos, geralmente com dedilhado barroco (exceto se especificado diferente), e são adequados a todo flautista. Digamos que é o padrão. Assim como esta, também encontraremos flautas Rotemburgh, Debey, Bressan e Hotteterre, todas barrocas porém fabricadas por diferentes famílias de luthiers.

Ainda dentro das flautas chamadas barrocas, existe uma infinidade de modelos “neo-barrocos” produzidos pelas fábricas Mollenhauer, Moeck, Kueng, Yamaha, Aulos, Zen-on, e outros. Estes modelos não tem a pretensão de seguir uma cópia de instrumentos históricos e por isso não levam o nome dos luthiers, mas muitas vezes, são instrumentos muito bons. Todas as flautas barrocas alcançam 2 oitavas inteiras e mais uma segunda ou terça maior. É possível alcançar notas ainda mais agudas, dependendo do instrumento.

KynsekerExistem também as flautas renascentistas, diferentes das barrocas na sonoridade e no dedilhado, mas costumam ter o nome dos modelos seguindo o nome dos luthiers que as fabricavam da mesma forma que as barrocas: Bassano, Praetorius e Kynseker (foto) são alguns exemplos destas. A característica principal das flautas renascentistas é o formato do tubo, que é cilíndrico ao invés de cônico como nas barrocas; além de possuir furos muito maiores que suas parentes. Isso traz mudanças significativas na sonoridade, gerando um som muito mais potente especialmente nas notas graves e ligeiramente mais agressivo, porém mais apropriado do que as barrocas para tocar em conjunto de flautas doces.

As flautas renascentistas têm dedilhado diferente das barrocas, conforme já mencionei. Normalmente estas flautas têm uma tessitura um pouco menor que as flautas barrocas, alcançando até duas oitavas, mas geralmente sem alcançar a terceira oitava.

Dream RecordersAinda temos as flautas modernas, instrumentos desenvolvidos recentemente para ampliar as possibilidades deste instrumento tão maravilhoso: a flauta doce.

Nesta categoria, posso mencionar as dream recorders (foto), ou flauta dos sonhos, que foram desenvolvidas pela Adriana Breukink para obter a união das vantagens das flautas barrocas e renascentistas em um único instrumento: o ideal sonoro da renascença com o dedilhado e tessitura das flautas barrocas. Estas flautas são produzidas pela Adriana Breukink sob encomenda, mas também pela fábrica alemã Mollenhauer.

Flautas quadradasAlém destas, destaco as flautas doces quadradas (foto), ou square recorders, atualmente produzidas por Jo Kunnath na Alemanha, e foram desenvolvidas por Joachim Paetzold baseadas em tubos de órgão. Até 2012 eram fabricadas por Herbert Paetzold, sobrinho do Joachim. Esta é uma família de 5 flautas graves, onde a mais aguda é a baixo ou basseto em fá, e a mais grave é uma sub-contrabaixo em fá (2 oitavas abaixo que a basseto).

HelderExistem ainda outras flautas modernas: a flauta harmônica Tarasov (soprano e contralto), produzidas pela Mollenhauer, que possui harmônicos afinados e possibilita uma extensão ampliada até a 4.a oitava; a flauta Ehlert (contralto e tenor), produzida pela Moeck, com características sonoras modernas e maior volume, a flauta Helder (foto) contralto e tenor, produzida pela Mollenhauer, com bloco e teto móvel, que possibilita a mudança de timbre e possui uma sonoridade muito homogênea em toda a tessitura, e a mais nova invenção: a flauta Eagle, desenvolvida pela Adriana Breukink e produzida em conjunto com a Kueng, com o som muito potente, para que possa ser usada para tocar junto com instrumentos modernos, como piano, violino ou como solista em uma orquestra.

Agora que já sabemos qual instrumento iremos comprar, temos que saber escolher o melhor dentre os instrumentos disponíveis, ou ao menos, avaliar se o único disponível é bom o suficiente. Aguardem, pois o próximo artigo será voltado aos critérios qualitativos na escolha do instrumento.

Afinação – acabando com os mitos

Música das esferasContinuando o assunto do artigo da semana passada sobre afinação, mas agora com uma visão um pouco mais teórica sobre o assunto. Tenho visto muitos músicos com grande dificuldade para compreender e consequentemente em como fazer para tocar afinado, e esta dificuldade os deixa muito preocupados… mas com muitos flautistas acontece justamente o oposto, por pensar que basta fazer o dedilhado correto, estes nem pensam que a afinação existe ou que devemos nos preocupar com isto, o que é muito grave.

Por esta razão, decidi esclarecer este assunto, que não é difícil, nem complicado. Além de músico, sou engenheiro, e por isso decidi colocar argumentos musicais, visuais e matemáticos, assim todos terão referências sobre como devemos afinar cada nota: pessoas auditivas usam os exemplos sonoros, pessoas visuais terão referências visuais, e pessoas com pensamento abstrato podem usar os conceitos matemáticos apresentados.

Não se preocupe caso você não entenda algum conceito específico, pois o importante é o resultado sonoro ao tocar seu instrumento. Irei aqui proporcionar meios para que você possa aplicar isto no seu estudo do instrumento. Se houver alguma dúvida, basta escrever para mim, pois serei grato em ajudar.

Segue abaixo os conceitos que irei abordar:

  • Referência Lá = 440Hz – O que é isso?
  • A série harmônica
  • Breve histórico – Como afinar a escala?
  • Afinação temperada
  • Afinação justa
  • Tocando em um grupo
  • Relação pura x relação temperada
  • Devo tocar a sensível mais alta?

Referência Lá = 440Hz – O que é isso?

O som é o resultado de uma vibração que se propaga pelo ar até o nosso ouvido. Toda vibração que se propaga por um meio, chamamos de “onda”. Por isso, um outro nome mais exato para o som é “onda sonora”. O meio pelo qual o som se propaga é o ar, movimentando suas moléculas, por isso o som é considerado uma onda mecânica.

Num instrumento de corda, a corda vibra numa velocidade que é proporcional à tensão da corda e inversamente proporcional ao seu comprimento e diâmetro. Num instrumento de sopro, é o ar que vibra, em velocidade inversamente proporcional ao comprimento do instrumento (quanto maior mais grave, quanto menor mais agudo) e proporcionalmente à velocidade do ar colocado dentro do instrumento (quanto mais velocidade, mais agudo). Esta velocidade de vibração, ou de uma forma mais exata, a quantidade de ciclos (vibrações) por segundo, chamamos de frequência.

Hoje em dia, a maioria dos instrumentos são afinados com a nota Lá calibrada em 440Hz ou 440 ciclos por segundo, também chamamos de diapasão 440Hz. Esta é uma convenção não muito antiga, só se chegou a isso depois da 2.a guerra mundial, por volta dos anos 50. Algumas orquestras afinam os instrumentos em 442Hz, algumas um pouco mais alto como 445Hz, e normalmente, na música barroca, usamos o diapasão 415Hz, exatamente meio tom abaixo da convenção moderna.

Estas não são as únicas convenções possíveis para afinação. Durante a história da música ocidental, existem evidências do diapasão variando desde 380Hz até 502Hz, uma variação maior que uma quarta justa. Mas, para que dois instrumentos diferentes toquem em conjunto, é necessário definir uma convenção, ou um diapasão. Normalmente as flautas doces tem afinação 440 ou 415Hz.

A série harmônica

Cada som produzido mecanicamente, produz o que chamamos de harmônicos. Harmônicos são sons simultâneos, com frequências múltiplas da frequência fundamental. São os harmônicos que definem o timbre dos instrumentos.

Como exemplo, imaginemos um som com frequência de 100Hz. Seus harmônicos terão as frequências de 200, 300, 400, 500, 600, 700Hz e assim por diante. Em um instrumento de corda isto é muito presente e visível, pois podemos dividir a corda em 2, 3, 4, 5 partes iguais, e teremos o som respectivo de cada um dos harmônicos.

A série harmônica

Da mesma forma que cada harmônico tem uma frequência, podemos dizer que cada harmônico representa uma nota, e isto tem tudo a ver com o nosso assunto principal: a afinação. Quando ouvimos duas notas afinadas, podemos afirmar que seus harmônicos  coincidem. Intervalos consonantes são intervalos com muitos harmônicos coincidentes, enquanto intervalos dissonantes são intervalos com poucos ou nenhum harmônicos coincidentes.

De todos as notas da série harmônica, utilizaremos os primeiros 8:

1.o – fundamental
2.o – oitava
3.o – quinta justa
4.o – oitava
5.o – terça maior
6.o – quinta justa
7.o – sétima menor, afinada bem baixa
8.o – oitava

Estes intervalos formam a base de toda harmonia tonal, e são perfeitamente reconhecíveis auditivamente ao tocar o instrumento.

Exercício 1: feche todos os furos da flauta, e toque a nota (dó na flauta soprano ou fá na contralto). Ao soprar um pouco mais, ouviremos o segundo harmônico (oitava acima). Ao soprar um pouco mais, ouviremos o 3.o harmônico (sol na soprano, dó na contralto). Um pouco mais e ouviremos o 4.o harmônico. É possível chegar até o 7.o ou 8.o harmônico com um bom instrumento e boa técnica.

Exercício 2: Encontre um amigo que toca algum instrumento de corda (violino, cello, violão, cavaquinho, guitarra, etc), e peça a ele mostrar os harmônicos do instrumento. Caso ele não saiba, peça para encostar o dedo levemente bem no meio da corda, sem pressão, e tocar. Deve soar a nota oitava acima da corda solta. Se dividir a corda em 3 partes, encostando o dedo em uma das divisões, soará a nota 12.a acima (8.a + 5.a). No violino ou cello, é possível ouvir muitos harmônicos dividindo a corda em mais e mais partes iguais.

Muitos violonistas usam os harmônicos para afinar as cordas do instrumento, este é um excelente exercício auditivo e tem tudo a ver com o que vamos discutir daqui em diante.

Breve histórico – Como afinar a escala?

A escala musical tem 7 notas, mas se considerarmos todos os acidentes (sustenidos e bemóis), temos 12 notas. Já sabemos que a nota Lá tem a frequência de 440Hz, e que ela possui harmônicos (lá = 880Hz, mi = 1320Hz, lá = 1760Hz, dó# = 2200Hz, etc) seguindo a série harmônica.

Também podemos aplicar o pensamento inverso, e descobrir as frequências das notas da série harmônica mais graves que o lá, basta dividir 440 por 1, depois por 2, por 3, por 4 e assim por diante, resultando lá = 220Hz, ré = 146,66Hz, lá = 110Hz, fá = 88Hz.

Para quem não acompanhou a matemática envolvida, eu primeiro multipliquei o número 440 por 1, depois por 2 (880), depois por 3 (1320), etc. Em seguida, fiz o mesmo dividindo. Se pensarmos no instrumento de corda, fazemos a multiplicação quando dividimos a corda em partes iguais (quanto menor a corda, mais aguda é a nota). E a divisão da frequência quando “esticamos” a corda (quanto maior a corda, mais grave).

Pitágoras e seus experimentosDesde a antiguidade, os músicos, filósofos, físicos e matemáticos já conheciam muito bem estas coisas. Pitágoras, o filósofo grego que viveu no séc. VI A.C., descobriu a base numérica da acústica. Dizem as lendas que enquanto ouvia um ferreiro martelando uma bigorna ele percebeu os intervalos musicais, e que as consonâncias deveriam ser representadas por proporções numéricas simples derivadas do tetractys (1, 2, 3, 4), a sequência de números que derivam todas as coisas do Universo. Em música, 2:1 corresponde à oitava, 3:1 à oitava mais uma quinta, 4:1 representa 2 oitavas, 3:2 a quinta justa e 4:3 uma quarta justa.

Seguindo este princípio, podemos imaginar que, podemos seguir o círculo de quintas e afinar as 12 notas da escala, certo?

Errado… A matemática e nossos ouvidos nos provam que isto não é verdade. Quando seguimos este método, chegamos num problema intrínseco à nossa escala musical:

Proporções

"Círculo" de Quintas PurasA figura acima mostra, que se partirmos da nota Dó, sempre em quintas afinadas ou puras, ou seja: Dó, Sol, Ré, Lá, Mi, Si, Fá#, Dó#, Sol#, Ré#, Lá#, Mi# (ou Fá), ao chegar no Si# este não terá a mesma afinação do Dó, ao invés disso, será uma nota muito alta. A esta diferença, chamamos de “coma pitagórico”.

Também poderíamos imaginar em afinar as terças puras, usando a proporção do 5.o harmônico. Partindo da nota Dó, seria assim:

Terças purasDó, Mi, Sol#, Si# (ou Dó). Vemos que neste caso, o Si# (ou Dó) seria mais baixo daquilo que esperávamos.

Estes problemas começaram a ser discutidos por teóricos do séc. XIV, quando surgiram os “temperamentos”.

Temperamentos

Os temperamentos foram criados para solucionar os problemas que mencionamos anteriormente, de forma a manter a escala o mais afinada possível, e evitando o uso dos intervalos “ruins” ou desafinados.

Ainda na Idade Média, o temperamento mais comum era o chamado Pitagórico, que se baseia na afinação de quintas puras, partindo da nota Ré, nota considerada o centro da escala. Como o repertório naquela época continha apenas intervalos de quintas e quartas justas e todas as terças eram consideradas dissonâncias, este temperamento era muito apropriado. Neste temperamento, a única quinta desafinada é entre Mib e Láb (ou Sol#), que fica muito curta pela razão que expliquei anteriormente. Por isso, o repertório deste período raramente utiliza estas notas. O batimento produzido quando estas notas são tocadas juntas parece o uivo de um lobo, e por isso, esta é a chamada “quinta do lobo”.

Espiral da escala mezotionica

Na Renascença (por volta de 1500 D.C.) os músicos e teóricos procuraram uma maneira melhor de dividir a escala, sempre buscando uma melhor adequação ao repertório da música atual. A polifonia está na moda, e a afinação pitagórica não atende as exigências estéticas, com isso surge o temperamento Mezotônico, favorecendo os intervalos de terças ao invés das quintas. Assim, algumas quintas são “estreitadas” para que as terças maiores sejam puras. Desta forma, é dado o primeiro passo para que a harmonia tonal seja criada, alguns séculos mais tarde. Neste temperamento, a afinação de um Sol# e um Láb são diferentes, e não é possível transpor tons, pois algumas tonalidades serão mais afinadas que outras, e não é possível fazer enarmonizações, isto é, o Dó# é diferente do Réb, e por esta razão, este temperamento é categorizado como linear.

The modern musick-master (1730-1731), "The art of playing on the violin", pg 4Na figura ao lado, retirada do livro “The modern musick-master” escrito por Peter Prelleur em 1730-1731, onde ele fala sobre “The art of playing on the violin” (a arte de tocar o violino), podemos perceber que as notas D# e Eb logo no início da escala não são iguais, e que o Eb deve ser ligeiramente mais alto do que o D#. Olhando mais atentamente, vemos que todos os sustenidos devem ser mais baixos do que os bemóis correspondentes, algo que seria impossível de realizar em um instrumento de teclados, mas é perfeitamente realizável no violino ou na flauta doce. Este livro pode ser encontrado em formato digital gratuitamente na internet, na biblioteca de partituras de domínio público.

Já no período Barroco (a partir de 1600), a estética musical adota a harmonia tonal como padrão, e por isso a estética demanda uma variedade maior de tons afinados. Muitos teóricos criam possibilidades de temperamentos, baseando-se no mezotônico porém estendendo suas possibilidades: Vallotti, Kirnberger, Werckmeister, Young são exemplos destes temperamentos. Todos estes temperamentos favorecem alguns tons mais usados (com até 3 sustenidos ou 3 bemóis na clave) que soariam mais afinados, mas desfavorecendo as tonalidades com mais acidentes que soariam mais desafinados; isto faz parte da estética do período barroco, já que os compositores usariam disso para criar afetos diferentes em cada composição. Alguns temperamentos deste período já podem ser categorizados como temperamento circular, pois possibilitam tocar em todos os tons da escala de 12 notas, mas cada tom tem uma colocação ou resultado diferente.

Bach compõe O Cravo Bem Temperado, que deveria usar um temperamento que possibilitasse transpor as melodias para todos os tons da escala, mas isto não quer dizer que todas as escalas soassem iguais, cada uma teria um afeto diferente.

Exemplo de temperamento circular irregular
Exemplo de temperamento circular irregular, e os respectivos ajustes na proporção das quintas

A partir de 1730, a estética começa a exigir temperamentos mais “iguais”, por causa da grande necessidade de modulações (uma música que começa em Dó Maior, e modula para Sol Maior ou Lá Menor, por exemplo). Esta necessidade cresce até o Romantismo (meados de 1800 em diante), quando a harmonia tonal chega ao seu limite e os compositores fazem uso de modulações muito distantes (Lá maior para Dó menor, por exemplo), o que seria impossível em um temperamento mezotônico.

Embora o temperamento igual ainda não fosse utilizado neste período de forma massiva, já era usada uma afinação muito parecida com a que usamos atualmente.

Afinação temperada

Este é o temperamento exibido em qualquer afinador eletrônico moderno, e utilizado amplamente na música clássica e popular nos dias de hoje. Apenas com o surgimento dos instrumentos musicais e afinadores eletrônicos, foi possível realizar, em termos práticos e difundido a todos os músicos, o que chamamos de afinação temperada, ou afinação igual, temperamento igual, ou ainda escala igualmente desafinada. Desde a antiguidade, os músicos teóricos já conheciam a afinação temperada – Vicenzo Galilei (ca. 1520 – 1591), pai de Galileu Galilei, defendia o temperamento igual – mas não possuíam meios práticos para afinarem todos os instrumentos por este método, além do que este temperamento não era considerado adequado, pois ao invés de favorecer as escalas mais usadas e desfavorecer as menos utilizadas, o temperamento igual desafina igualmente todos os intervalos para que a música possa ser transposta para todos os tons. Por esta razão, embora já fosse conhecido pelos teóricos, os músicos simplesmente ignoraram este temperamento por vários séculos.

Para padronizar a escala igualmente, a oitava é dividida em 12 partes iguais, matematicamente, e para isso não são usadas proporções puras, ao invés disso é usado um número racional:

Afinação igualAo lado, está a proporção de cada semitom no temperamento igual, e como devemos calcular cada uma das notas.

O temperamento igual possui as quintas justas muito parecidas com as quintas puras do temperamento pitagórico, apenas 2 cents mais estreitas do que as quintas puras, isto é, o problema da “quinta do lobo” é dividido igualmente por toda a escala. Porém, as terças, tanto maiores quanto menores, são muito diferentes das terças puras (ver tabela no final deste artigo), e alguns teóricos costumam dizer que as terças são mais “brilhantes” desta forma, quando também podemos dizer que são apenas mais desafinadas.

Calculando a nota C4Como exemplo, mostro ao lado como calculamos a frequência do Dó Central, a partir da nota Lá = 440Hz, por diferentes métodos. O primeiro usando o temperamento igual, e depois pela afinação justa (explicado em seguida). Podemos perceber que existe uma diferença considerável no resultado, cerca de 3,5Hz, bem significativo para nosso ouvido. Também percebemos que a matemática envolvida no temperamento igual é bem mais complexa do que a afinação justa.

No link abaixo, é possível fazer o download de uma demonstração que exemplifica a diferença entre a afinação pitagórica, mezotônica e igual:

Pythagorean, Meantone, and Equal Temperament Musical Scales

Afinação justa

Aqui chegamos ao ponto crucial deste artigo: a afinação justa. Até agora falamos de modelos de afinação fixos, isto é, são utilizados nos instrumentos que têm a afinação das notas fixas durante a performance (como o piano e o violão, por exemplo), mas nos instrumentos que possibilitam afinar as notas enquanto tocamos, como a flauta doce – o violino, e quase todos os instrumentos de sopros e cordas – procuramos tocar com a afinação justa para evitar os problemas mencionados anteriormente, como a quinta do lobo.

A afinação justa já era grande conhecida dos músicos e teóricos de todos os tempos, tanto na música ocidental como na música oriental. Embora seja procurado por muitos músicos, é impraticável nos instrumentos de afinação fixa (violão e piano, por exemplo) pois demanda uma certa flexibilidade do músico. Neste modelo, todas as notas são afinadas pelas proporções da série harmônica.

Acima podemos assistir um vídeo (em inglês) que mostra claramente as diferenças entre a afinação justa (justonic tuning) e a afinação temperada (tempered tuning). Prestem atenção no áudio, na diferença entre os intervalos. Na afinação justa não existem batimentos, ou seja, não existem oscilações quando tocamos dois ou mais sons simultâneos. Já na afinação temperada, os batimentos são sempre presentes, como se existisse uma espécie de vibrato mesmo quando não há vibrato de fato.

De todos os modelos que apresentei, este é o que é mais fácil de realizar auditivamente, pois sempre procuramos a inexistência de batimentos. Além disso, este modelo não é fixo, isto é, uma nota sol não é afinada sempre da mesma forma, pois a afinação varia com as notas da harmonia, ou seja, as notas que são tocadas simultaneamente. Cada nota do acorde deve ser afinada de acordo com a tabela do final deste artigo (comparando ao temperamento igual, as quintas são ligeiramente mais altas, terças maiores mais baixas e terças menores mais altas).

Tocando em um grupo

Quando tocamos em um grupo, devemos definir o que queremos em termos de afinação, e assim devemos sempre buscar este objetivo, mas sempre consciente de qual é o objetivo. Além disso, temos alguns critérios que podemos usar para definir qual modelo mais adequado:

– qualquer formação que contenha piano, violão ou outro instrumento moderno de afinação fixa – temperamento igual;

– qualquer formação que contenha instrumentos antigos de afinação fixa, como cravo, alaúde ou teorba – algum temperamento antigo (Mezotonico, Valoti, ou outro), condizente com o repertório escolhido;

– grupos com instrumentos de afinação não temperada, todos os grupos de flautas doces, grupos de cordas – afinação justa;

Relação pura x relação temperada

Coloco abaixo uma lista com a relação de todos os intervalos, mostrando a diferença entre a afinação justa e a temperada. Esta referência é relativa, por isso, embora os exemplos quase sempre partam da nota Dó, também podem ser usados partindo de todas as notas.

A primeira coluna dá nome aos intervalos, e alguns destes intervalos podem ter mais de uma maneira de afinar, aqui menciono apenas algumas delas (provavelmente você pode encontrar outras proporções possíveis e próximas para o mesmo intervalo). Eu escolhi as proporções mais simples possíveis para cada intervalo.

A segunda coluna exemplifica o intervalo dado. Agora podemos ver claramente que intervalos enarmônicos (Dó# e Réb, por exemplo) não devem ser afinados da mesma maneira.

A terceira coluna mostra a proporção usada para calcular a distância entre as notas na afinação justa. Esta proporção pode ser a relação das frequências das notas, ou a relação entre o tamanho da corda, ou a relação da coluna de ar, tanto faz a medida, mas a proporção é que define o intervalo.

A quarta coluna mostra o tamanho do intervalo puro em cents, isto é, a medida que é largamente utilizada nos afinadores eletrônicos.

A quinta coluna mostra o tamanho do intervalo na afinação igual ou temperada. Percebemos que cada semitom equivale a 100 cents, e a escala completa equivale a 1200 cents. A diferença entre a quinta e a quarta coluna resulta o quanto devemos ajustar o intervalo para termos a nota perfeitamente afinada, ou seja, sem batimentos.

Assim, podemos afirmar que para afinar:

  • terça menor, devemos aumentar o intervalo em 15,6 cents;
  • terça maior, devemos reduzir o intervalo em 13,7 cents;
  • quinta justa, devemos aumentar o intervalo em 1,96 cents;
  • sétima menor, deveríamos reduzir o intervalo em 31 cents. Mas como a sétima normalmente é uma dissonância, e esta relação é muito distante para mudar durante a performance, podemos usar a proporção 16:9 reduzindo em apenas 3,9 cents;

Estes são os intervalos mais comuns de encontrar na harmonia tonal. Todos os outros estão na tabela do final do artigo.

Devo tocar a sensível mais alta?

Provavelmente você já ouviu falar sobre tocar a sensível (sétima) ligeiramente mais alta, de forma que ela “caminha” para a tônica (fundamental) da escala. Isso nos leva a pensar que deveríamos fazer os sustenidos mais altos do que os bemóis, exatamente o oposto do que eu sugiro em todo o artigo.

Este pensamento era defendido por um grande cellista chamado Pablo Casals do início do séc. XX, e se baseia num princípio melódico, que antecipa a resolução da nota mostrando a direção que ela deve tomar. Além disso, no temperamento pitagórico, os sustenidos são mais altos que os bemóis correspondentes, fazendo que a sensível seja mais alta, e muitos instrumentistas dos instrumentos de cordas (violino, viola, cello, etc) usam uma variação do temperamento pitagórico. Porém, nenhum desses princípios é compatível com a afinação justa, tema central deste artigo.

Este assunto é muito extenso, e mesmo sendo algo exato e matemático, vimos que temos muitas possibilidades criativas a respeito da afinação, muitas escolhas a fazer e cada escolha tem seus prós e contras. Como a afinação está diretamente relacionada com a técnica do instrumento, não podemos deixá-la de lado, mas sim, devemos buscá-la desde nossos primeiros passos ao aprender música e tocar um instrumento.

Para aqueles que querem saber mais, recomendo os livros a seguir:

Intervalo Exemplo Proporção Afinação Justa Afinação Temperada
Semitom Cromático C-C# 25:24 70,7 100
Semitom Sintônico C-C# 135:128 92,2 100
Semitom Diatônico C-Db 16:15 111,7 100
2.a Maior (baixa) C-D 10:9 182,4 200
2.a Maior (alta) C-D 9:8 203,9 200
3.a Diminuta C#-Eb 256:225 223,5 200
2.a Aumentada C-D# 75:64 274,6 300
3.a Menor C-Eb 6:5 315,6 300
3.a Maior C-E 5:4 386,3 400
4.a Diminuta C-Fb 32:25 427,4 400
3.a Aumentada C-E# 125:96 478,5 500
4.a Justa C-F 4:3 498,04 500
4.a Aumentada C-F# 45:32 590,2 600
5.a Diminuta C-Gb 64:45 609,8 600
5.a Justa C-G 3:2 701,96 700
5.a Aumentada (baixa) C-G# 25:16 772,6 800
5.a Aumentada (alta) C-G# 405:256 794,1 800
6.a Menor C-Ab 8:5 813,7 800
6.a Maior C-A 5:3 884,4 900
7.a Menor (justa) G-F 7:4 968,8 1000
6.a Aumentada C-A# 225:128 976,5 1000
7.a Menor (baixa) C-Bb 16:9 996,1 1000
7.a Menor (alta) C-Bb 9:5 1017,6 1000
7.a Maior (sensível) C-B 15:8 1088,3 1100
8.a Diminuta C-Cb 256:135 1107,8 1100
7.a Aumentada (baixa) C-B# 125:64 1158,9 1200
7.a Aumentada (alta) C-B# 2025:1024 1180,4 1200
8.a Justa C-C 2:1 1200 1200

Afinação – a prática leva à perfeição

Me lembro dos tempos em que estudava na escola de música… Todos os professores falavam para tocar afinado, para buscar a afinação, para estudar com o afinador… Assistindo o vídeo que postei acima, me pergunto: será que estes músicos aprenderam a tocar tão afinados apenas estudando com um afinador? Será que existe algo mais? A afinação tem algum segredo, ou qualquer pessoa pode tocar assim afinado?

Voltando aos tempos da escola de música, hoje em dia eu lamento não ter tido aulas deste assunto quando era bem pequeno e estava começando a aprender a tocar flauta doce, aos meus oito anos de idade. Vejo alguns alunos muito pequenos, que aprendem a ouvir intervalos afinados desde cedo, não têm dificuldade alguma para afinar seus instrumentos ou tocar afinado em um grupo. Porém, mesmo não sendo tão jovem, podemos aprender alguns conceitos e parâmetros que nos ajudam a tocar sempre afinados.

Aprendendo a ouvir

Como aprendemos a falar? Se não se lembra de suas primeiras palavras, preste atenção em uma criança e veja como ela aprende a falar. Os pais repetem a palavra “mamãe” e “papai” 1.000.000 vezes, até que a criança repita a palavra, e assim, pela audição e repetição, a criança vai aprendendo um vocabulário cada vez mais extenso. Esta é a forma mais natural de aprender um idioma, e tenho tido diversas experiências que me comprovam que a música é apenas mais um idioma, e pode (e deveria!) ser ensinado desta mesma forma.

Mas o assunto era afinação… mas haveria outra forma de aprendermos sobre afinação de forma teórica, sem ouvir primeiro? Talvez sim, mas seria muito mais difícil. Primeiro temos que ouvir a diferença entre duas notas afinadas, e duas notas desafinadas. Por que duas? Pois se existir apenas uma nota, não temos a referência auditiva que informa nosso ouvido de forma objetiva que a nota está afinada ou desafinada.

Áudio que demonstra intervalos de uníssono, oitavas, quintas justas, terças maiores e menores, e acorde maior e menor

Esta é a referência que precisamos para saber o que é um intervalo de uníssono, oitava, quinta justa e terça maior, respectivamente. Em cada um dos intervalos, ele inicia afinado (sem batimentos), depois desafina (passa a ter batimentos), e afina novamente. Os dois acordes do final são acordes com afinação pura.

Batimento: é o resultado da diferença das frequências de duas notas diferentes. O resultado sonoro é parecido com um vibrato, a nota faz um zumbido dissonante, ouvimos uma oscilação lenta ou rápida dependendo do tamanho da desafinação. Para ter notas afinadas, não deve haver batimentos entre as notas.

O que fazer para afinar a flauta doce

Primeiro devemos ter em mente que a flauta doce não é um instrumento temperado,  ou seja, que as notas não são fixas como as do piano, por exemplo. Temos várias formas de alterar a afinação de uma nota:

– Alterando o tamanho do instrumento, abrindo ou fechando o encaixe – Variando a pressão do ar, assoprando mais ou menos – Alterando o dedilhado das notas, usando diferentes dedilhados para a mesma nota – Tampando ou abrindo metade dos furos usados no dedilhado (sombra)

Desta forma, antes de tocar é importantíssimo afinar o instrumento de acordo com uma referência, fazemos isso ajustando o encaixe da cabeça da flauta. A referência pode ser um afinador, um diapasão, ou o instrumento mais baixo (não o mais grave) e mais estável dentro de um grupo, afinal não podemos fechar a flauta mais do que o encaixe possibilita, mas sempre podemos abrir para abaixar a afinação.

encaixePara afinar o instrumento, devemos soprar uniformemente, sem oscilações no ar, sem vibrato, mantendo a pressão do ar confortável e da mesma forma que sopramos para tocar uma música. Desta forma, devemos tocar uma nota e compará-la com uma referência, auditivamente, abrindo o instrumento se estiver alto, e fechando o instrumento se estiver baixo. Para saber se a flauta está alta ou baixa quando ainda não temos esta percepção auditiva, assopramos pouco para que a afinação esteja baixa, e gradativamente, vamos aumentando a pressão do ar até que chegamos na referência:   quando deixamos de ouvir os batimentos. Se continuamos a aumentar a pressão do ar a partir deste ponto, voltaremos a ouvir os batimentos.

Importante: quando usamos um afinador para esta tarefa, ao invés de olhar o ponteiro, devemos colocá-lo para tocar a nota Lá e tocamos juntos para afinar os intervalos, pois queremos treinar a nossa percepção e os nossos ouvidos, e não os nossos olhos.

Assim que afinamos a nota Lá, abrindo ou fechando a flauta, temos que confirmar se está realmente afinada. Para isso, tocamos novamente, e comparamos o ataque da nota que deve estar afinado. Temos que conseguir atacar, manter e cortar a nota completamente afinada, do início ao fim. Este é um excelente exercício de respiração e percepção, que deve ser praticado por todos flautistas.

O próximo passo, é conseguir afinar os intervalos de quinta justa, isto é, se temos um afinador tocando a nota Lá, podemos tocar a nota Mi aguda ou o Ré grave, seguindo o mesmo princípio: buscamos acabar com os batimentos, isto é, o resultado deve ser um som único que funde as duas notas, sem oscilações. Como a flauta já foi afinada no início do exercício, neste ponto devemos apenas afinar mudando a pressão do ar, controlando o som para que todas as notas sejam afinadas, desde o ataque, mantendo por alguns segundos, e cortando o som sem alterar a afinação.

Temos que repetir este mesmo exercício para todas as notas da escala. Se o nosso afinador só toca a nota Lá, podemos usar um teclado como referência, para que possamos aprender a afinar todas as notas da escala. Se a referência é um Lá, tocamos o Ré grave e o Mi agudo. Se a referência é um Sol, tocamos o Ré agudo e o Dó grave, e assim por diante. Perceba que, para cada nota, teremos uma maneira certa de soprar para que a mesma esteja afinada. Se assopramos todas notas da mesma maneira, todas estarão desafinadas.

Quando conseguirmos tocar todas as notas da escala pelas quintas justas, todas afinadas, desde o ataque até o corte, podemos seguir para as terças maiores e menores, fazendo arpejos: se a referência é um Dó, tocamos Dó, Mi, Sol e também Dó, Mib, Sol. Se a referência for Ré, tocamos Ré, Fá#, Lá e também Ré, Fá, Lá, e assim por diante, sempre buscando a afinação perfeita, isto é: sem batimentos, em cada uma das notas. Para isso, não podemos ter pressa, pois, queremos escutar cada nota e treinar nosso ouvido a detectar os batimentos, além da nossa flexibilidade em alterar o sopro e alterando a quantidade de ar para afinar cada uma das notas.

Neste exercício de arpejos, nos depararemos com algo curioso: temos que mudar bastante a quantidade de ar para afinar as terças do arpejo. Experimente você mesmo antes de continuar a leitura do artigo, e veja se consegue descobrir o que devemos fazer para conseguir afinar as terças.

Dedilhados alternativos

dedilhadosFazendo o exercício dos arpejos, perceberemos que, em algumas das notas, não conseguiremos afinar apenas alterando a quantidade de ar e precisaremos usar o que chamamos de dedilhados alternativos para que possamos soprar de forma confortável em toda a escala. Acima, podemos ver uma tabela com a relação de alguns dedilhados alternativos possíveis, mostrando que a posição de Fá# é diferente da posição de Solb, assim como algumas outras notas mais usadas. Estas posições podem mudar de instrumento para instrumento.

Por isso, aconselho visitarem o o site www.recorder-fingerings.com, onde podemos ver todos os dedilhados, em uma lista bem mais completa.

semitomBasicamente, precisamos prestar atenção em duas coisas: todas as notas com sustenido (#) devem ser ligeiramente mais baixas do que as notas correspondentes com bemóis (b). Isto é, a nota Sol# deve ser mais baixa que a nota Láb. Também podemos dizer que a nota Sib deve ser mais alta que a nota Lá#, assim como o Réb deve ser mais alto que o Dó#. Isto pode ser motivo de contestações, principalmente por quem toca violino ou violoncello, mas eu explicarei as razões para isso com maiores detalhes no próximo artigo.

A segunda coisa que precisamos ter em mente é a afinação das terças: as terças maiores devem ser ligeiramente mais “estreitas”, enquanto as terças menores devem ser ligeiramente mais “alargadas”.

Embora não seja o assunto principal deste artigo, posso mencionar que também podemos escolher dedilhados alternativos para mudar o timbre. Ao experimentar os dedilhados alternativos, você perceberá que cada dedilhado tem um som característico, e podemos (e devemos) usar isso ao nosso favor, de forma criativa como mais uma ferramenta de enriquecer a música por nós tocada.

Trabalhando a afinação em um grupo

EncadeamentoAgora que já estamos habituados com o resultado sonoro dos intervalos afinados, e também já sabemos as técnicas para afinar as notas enquanto tocamos, vou introduzir um exercício para ser tocado em um grupo, um quarteto de flautas doces, mas que pode ser usado para outras formações de instrumentos não temperados, como o quarteto de cordas por exemplo.

Seguiremos os passos seguintes:

  1. Afinar os instrumentos
  2. Analisar a música, achar as quintas, terças maiores e menores
  3. Tocar o primeiro acorde afinado
  4. Tocar até o fim, com especial cuidado no último acorde

 1. Afinar os instrumentos

Para isso, temos algumas abordagens possíveis:

Afinar apenas a nota Lá em todas as flautas – Aqui, temos que iniciar com todas as flautas fechadas, e auditivamente ou com um afinador, encontramos qual flauta é a que possui a afinação mais baixa. Todas as outras flautas usam esta como referência, abrindo ligeiramente até afinar. Desvantagem: quando tocamos uma música que possui poucas notas Lá (tonalidade de Mib maior por exemplo), a afinação de toda a música pode ficar comprometida.

– Afinar com a nota da tonalidade da música – O procedimento é o mesmo que no método anterior, mas usamos a nota da tonalidade da peça. Resolve o problema da tonalidade, mas não funciona se a música modular para tonalidades distantes, ou se algum instrumento tiver algum problema pontual de afinação.

Afinar todas flautas em um único dedilhado – Flautas em Dó (soprano e tenor) tocam Lá, e flautas em Fá (contralto e baixo) tocam Ré. Esta abordagem é excelente para música renascentista e medieval, e funciona bem também em outros repertórios. Recomendo esta abordagem para todos os grupos que ainda não se familiarizaram com a afinação de acordes.

Afinar acordes na tonalidade da música – Esta abordagem é a mais completa, porém pode induzir erros nos músicos que tocam a terça do acorde. Como as terças devem ser altas ou baixas dependendo se o acorde é menor ou maior respectivamente, o músico deve ajustar seu instrumento levando em consideração este fato. Nesta abordagem, usamos pelo menos 2 acordes: o primeiro e o último da música.

Em qualquer que seja a abordagem escolhida, a intenção aqui é apenas manter os instrumentos afinados, de forma que cada músico tenha flexibilidade para alterar a afinação durante a música pelo sopro ou dedilhado, sem precisar mexer no encaixe. Afinal, precisaremos desta flexibilidade para afinar as terças e quintas de cada acorde.

2. Analisar a música, achar as quintas, terças maiores e menores

Temos agora que analisar o que iremos tocar, procurando em cada acorde as terças (menores e maiores) e quintas justas. Como este é o primeiro exercício, poupei este trabalho marcando cada um dos intervalos em cores, basta que você descubra qual cor representa a quinta, qual cor representa a terça menor e a terça maior.

EncadeamentoPreste muita atenção nas notas coloridas, é muito importante entender o que está acontecendo. Temos que destrinchar o acorde, procurando quais notas devemos tocar diferente. Quem toca as notas pretas precisa se manter bem estável, os outros mudam o sopro ou dedilhado para afinar com a nota fundamental.

3. Tocar o primeiro acorde afinado

Neste ponto, devemos usar o tempo que for necessário para afinar muito bem o primeiro acorde, sem mudar o encaixe da flauta, afinal cada flauta já foi afinada na etapa 1.

Para conseguir isso, temos que afinar primeiro a nota fundamental do acorde – neste caso o(s) Ré(s) – enquanto os outros músicos ficam em silêncio. Em seguida, quem toca a quinta do acorde – neste caso o Lá – deve tocar e afinar, sem que os outros membros mudem o sopro. A intenção é manter o que já está afinado, para que apenas um membro mude, procurando a afinação correta até encontrá-la.

Por último, aquele que toca a terça do acorde – neste exercício o Fá# – deve tocar. Novamente, quem já estava afinado não deve mudar nada, apenas quem toca a terça deve mudar o sopro e/ou o dedilhado até encontrar a afinação correta, sem batimentos.

Lembrando: A fundamental deve estar na mesma referência do afinador. A quinta do acorde deve estar cerca de 2 cents mais alto do que a referência do afinador. A terça maior do acorde deve estar 14 cents mais baixo do que a referência do afinador, enquanto a terça menor deve estar 16 cents mais alto do que a referência do afinador. Veja a tabela no final do artigo.

4. Tocar até o fim, com especial cuidado no último acorde

Apenas quando afinamos o primeiro acorde muito bem, seguimos tocando o resto do exercício. Já anotamos quais notas devem ser altas, quais devem ser baixas, isso deve servir de guia para acostumarmos o nosso ouvido e nossa técnica, possuindo assim uma flexibilidade necessária para afinar cada acorde.

Temos que ter especial cuidado nas notas ligadas, pois uma mesma nota pode ter funções diferentes quando o acorde muda. Nestes casos, podemos fazer de duas formas distintas:

– Manter a nota ligada, sem alterar a afinação – todo o grupo deve usar a nota ligada como referência para afinar o próximo acorde. Isso pode causar um problema após uma sequência longa, pois podemos com isso sair do tom inicial.

– Alterar ligeiramente a nota ligada – este é um compromisso, quem mantém a nota ligada altera ligeiramente, e os outros seguem. Desta forma o grupo precisa de mais flexibilidade auditiva, mas é o que dá o melhor resultado.

– Sempre usar a nota fundamental como referência – quem mantém a nota ligada deve estar atento às mudanças das funções dentro do acorde, e mudar a afinação da nota.

https://youtu.be/GzgGiAySE2I

 

No vídeo acima vemos este mesmo exercício realizado pelos flautistas no Festival Internacional Suzuki do Perú, em Janeiro de 2013, quando fiz uma palestra sobre este assunto. Quando sabemos exatamente o que fazer para afinar os acordes, é fácil chegar a um bom resultado.

Abaixo apresento uma tabela com a diferença entre os intervalos chamados puros (sem batimentos) e os intervalos chamados temperados (usados nos instrumentos modernos e afinadores, por exemplo). Na afinação temperada, cada semitom tem o tamanho de 100 cents, mas, na afinação pura, esta distância varia em proporções simples de números inteiros. A tabela mostra, usando a mesma escala (em cents) a grande diferença entre os dois modelos de afinação, e isto deve ser considerado quando tocamos em grupo.

Aguardem o próximo artigo, com explicações mais específicas e um pouco mais de teoria sobre as razões por trás deste assunto.

Intervalo Exemplo Proporção Afinação Justa Afinação Temperada
3.a Menor C-Eb 6:5 315,6 300
3.a Maior C-E 5:4 386,3 400
5.a Justa C-G 3:2 701,96 700
8.a Justa C-C 2:1 1200 1200

Como devo limpar minha flauta de madeira?

Flauta ContraltoNo primeiro artigo, onde mencionei os cuidados necessários para manter sua flauta, falei da importância de manter nossos instrumentos limpos e bem cuidados. Porém, não expliquei como limpar sua flauta de madeira, pois esta requer alguns cuidados extras quando comparada a flauta de resina.

Sempre devemos ter em mente que é melhor prevenir do que consertar, por isso, se tomar todos os cuidados que mencionei até agora, como manter a flauta limpa, tomar os cuidados com o instrumento e manter a madeira hidratada e protegida com óleo, raramente será necessário fazer uma limpeza usando uma das técnicas descritas aqui.

Quando devo limpar minha flauta?

Precisamos saber quando a flauta precisa de uma limpeza. Depois disso, precisamos saber limpar cada tipo de sujeira.

As coisas mais comuns que podem acontecer com a flauta:

  • Pó e sujeira
  • Flauta grudenta
  • Fungos

Em seguida vou explicar como limpar cada tipo de problema.

Pó e sujeira

Flauta suja
Flauta suja antes da limpeza

Este é o tipo mais comum de coisas que demandam uma limpeza mais séria no instrumento, e também é o mais fácil de ser resolvido. Me refiro a um instrumento que tenha ficado muito tempo em cima da mesa ou da estante, ou que tenha sido usado com as mãos sujas. A poeira é facilmente visível. Fica com aquele aspecto poroso e sujo, quando não muito antiga pode ser limpa com um pano seco. Quando mais antiga, ela adere na superfície e fica mais difícil de limpar.

Flauta após a limpeza
Flauta após a limpeza com pano seco

Quando o instrumento fica sujo por causa das mãos, ficará marcado com formas de dedos ou manchas, especialmente nos furos. Quando isso acontece, devemos primeiramente limpar a flauta com um pano seco bem macio, que pode ser uma camiseta velha ou uma toalha macia. Podemos esfregar o pano por todo instrumento, usando pressão moderada, apenas tomando cuidado com a janela e o lábio, pois estes devem sempre ser preservados de qualquer tipo de contato ou pressão. Toda sujeira mais superficial será limpa dessa forma. Este procedimento também fará que a madeira fique mais brilhante e lustrosa.

Flauta com sujeira nos furos
Flauta com sujeira nos furos por contato com as mãos

Se ainda assim existirem manchas, podemos partir para uma limpeza mais efetiva, usando óleo. O procedimento é o mesmo de antes, mas o pano macio deve estar com óleo. Podemos usar o mesmo óleo que usamos para hidratar a madeira (óleo de linhaça, óleo de amêndoas, azeite de oliva, etc), ou então um óleo com propriedades anti-sépticas, o óleo de terebentina.

Pingamos algumas gotas de óleo no pano, e esfregamos o pano na parte externa do instrumento até que as manchas sejam limpas ou fiquem mais claras. Nunca use força para remover uma mancha ou sujeira, use a paciência: a flauta é um instrumento musical delicado, e não podemos usar a força pois isso pode danificar a madeira; melhor esfregar por mais tempo do que com mais força.

Depois de esfregar com o óleo, devemos limpar o excesso do óleo com um pano limpo, seco e macio. Ideal é usar uma toalha. Existem algumas manchas que não irão sair com este procedimento. Não adianta insistir muito, ou usar força. Mas não fique preocupado, pois uma mancha não afeta o som de seu instrumento, desde que a sujeira seja limpa.

Flauta grudenta

Close dos dedosEste é um sintoma comum, principalmente em locais mais frios ou quando não limpamos adequadamente o óleo que sobra após sua aplicação. Também pode acontecer após uma mudança brusca de temperatura, ao aquecer parte do óleo de dentro da madeira pode surgir na superfície, e ao resfriar ele deixa a flauta com este aspecto.

Neste caso, não adianta usar apenas um pano seco, pois não será suficiente para este tipo de limpeza. Devemos tentar limpar usando óleo como mencionei acima, em alguns casos isso resolve, em outros não. Caso o óleo não resolva, isto é, após esfregar o instrumento com óleo e limpar o excesso a flauta continuar grudenta, temos que remover completamente o excesso de óleo velho do instrumento, e refazer a aplicação do óleo em seguida. Isto também deve ser feito quando a poeira foi muito intensa e penetrou os poros da madeira. Para isso, usaremos álcool, facilmente encontrado em farmácias, com concentração de 90 graus ou maior. Não use álcool com concentração baixa – é muito comum encontrar álcool 46 graus para limpeza doméstica que não deve ser usado em instrumentos – pois este não consegue dissolver o óleo impregnado no instrumento.

Flauta com panoPara aplicar, use um pano macio ou toalha embebido em álcool, e esfregue por todo o instrumento. Não é necessário usar força, mas é necessário ser paciente. Durante este processo, o óleo vai sendo dissolvido e o pano e o instrumento ficarão grudentos e amarelados devido ao óleo que vai se dissolvendo e impregnando o pano. Troque o pano se for necessário, até limpar todo o instrumento. Quando estiver limpo, a madeira ficará com aspecto de ressecada, veios muito aparentes, em alguns casos parecendo que a madeira vai rachar a qualquer momento.Deixe a flauta secar por algumas horas, até todo álcool evaporar. O álcool seca com rapidez, por isso não é necessário esperar um dia inteiro. Depois deste tempo, a flauta não deve estar grudenta, pois todo o óleo velho foi removido; neste ponto a aplicação do óleo deve ser refeita da mesma forma que expliquei no artigo anterior.

Para quem não estiver seguro de usar álcool em suas flautas, é possível limpar usando pasta de dente em uma toalha molhada ou escova de dente, sempre lembrando que a pasta de dente só vai limpar direito se usar junto com água. Basta limpar todo o instrumento, e depois da limpeza com a pasta de dente, lave a flauta com água corrente removendo todo vestígio de pasta de dente do instrumento. Nunca deixe a flauta de molho. Depois de limpar a pasta de dente, deixe ela secar na posição vertical, e quando estiver completamente seca, aplique o óleo.

Fungos

Mancha na janela

Como já comentei, os instrumentos de sopros são muito vulneráveis a fungos, e estes são muito resistentes e difíceis de remover. Em alguns casos podem até danificar a estrutura da madeira, e por isso, é melhor cuidar para que eles nunca apareçam, mantendo a flauta limpa. Existem alguns tipos diferentes de fungos, com diferentes características:

  • Pontos escuros aleatórios. estes podem “crescer” ou se alastrar como uma doença
  • Manchas pretas nas partes úmidas (janela, encaixes, bocal)
  • “Bolhas” brancas ou na cor cinza, que crescem especialmente nas partes que não encostamos a mão, isto é, na parte interna do instrumento. Pode ser fatal quando isso acontece no canal e não agimos rapidamente para limpar.

Nestes casos, existem duas substâncias que podem ser usadas: hipoclorito de sódio – encontrado nos postos de saúde e usado para limpar alimentos – ou água sanitária. O hipoclorito deve ser usado em concentração de 50%, uma parte para cada parte de água, pois os frascos sempre contém a substância muito concentrada.

Hipoclorito de SódioSomente devemos usar estes produtos se todas as outras técnicas de limpeza já foram usadas sem resultado. O uso destes produtos pode alterar as características da madeira, e se o procedimento não for seguido a risca, pode simplesmente estragar completamente sua flauta.

Tanto a água sanitária quanto o hipoclorito de sódio devem ser usados da mesma forma. Com um cotonete ou algodão embebidos no produto, aplicar na flauta apenas na região afetada pelo fungo.

Aplicação do hipocloritoQuando o fungo afetou o canal da flauta, devemos usar um conta-gotas e pingar algumas gotas pelo canal da mesma forma que fazemos para usar anti-condensador. Imediatamente depois da aplicação, devemos remover o excesso do produto usando um jato de ar, e deixar secar por algumas horas com a flauta na posição vertical. Não temos interesse que o produto penetre a madeira, nosso interesse é limpar apenas a superfície. Se a flauta estiver hidratada com óleo, este já ajuda a manter a madeira protegida impedindo que o produto penetre.

Importante: nunca deixar a flauta de molho na água sanitária. Isso vai empenar, ressecar e destruir os veios da madeira, destruindo o instrumento. Passada uma ou duas horas após a aplicação do produto para remover os fungos, a flauta deve estar seca e sem manchas. Se não estiver seca ainda, use um ventilador para secar o instrumento mais rapidamente. Quando estiver completamente seco, aplicar óleo novamente, conforme já foi explicado. Nunca insistir em deixar o instrumento mais limpo do que pode estar. Ocasionalmente podem haver manchas ou marcas, que não afetam o som do instrumento, e o som é sempre mais importante que a aparência. Mesmo depois de tudo isso, as manchas podem permanecer no instrumento e não sairão nem com muita insistência, estas manchas que por ventura permanecerem certamente não afetam o funcionamento da flauta.

A flauta da foto que ilustra o capítulo sobre fungos tem mais de 30 anos, as manchas devem ter sido causadas por fungos há muitos anos, estes foram removidos mas a mancha permaneceu, e a flauta é excelente. Chegamos levar a flauta para seu luthier, que fez uma limpeza mais profunda dentro do canal e no bloco, mesmo assim a mancha permaneceu e ele nos assegurou que o fungo nunca mais voltaria se cuidássemos bem do instrumento.

Chaves grudando no instrumento

Talco para limpar o excesso de óleo das sapatilhasQuando nos descuidamos em manter as chaves do instrumento livres do contato com o óleo, elas costumam ficar grudentas, e seu funcionamento fica comprometido. Nestes casos, precisamos limpar cuidadosamente as sapatilhas com um pano embebido com álcool, para remover todo óleo que tenha penetrado no couro da sapatilha.

Após este procedimento, colocar talco em um guardanapo, e colocar este guardanapo entre a madeira e a sapatilha, para que o talco se deposite em toda a área que a sapatilha toca a madeira, evitando assim que ela grude. Este procedimento deve ser repetido sempre que a sapatilha voltar a grudar, até que volte a funcionar normalmente.

Em breve mais um artigo sobre afinação. Como afinar ao tocar em grupo!

Devo passar óleo nas minhas flautas doces? Como devo fazer?

Este assunto é controverso, pois ouvimos muitas pessoas dizer coisas muito conflitantes a este respeito. Algumas coisas que já ouvi pessoas comentarem:

  • Não devemos passar óleo nas flautas, pois a madeira já foi tratada e o óleo pode estragar a madeira;
  • Devemos passar óleo todos os dias, sempre lustrando a flauta com um pano ou pedaço de couro embebido em óleo;
  • Óleo de amêndoas é o ideal;
  • Óleo de semente de uvas é melhor, pois é mais fino;
  • Óleo de linhaça é melhor, pois não deixa resíduo;
  • Óleo pode inchar a madeira e fazer os encaixes do instrumento racharem;
  • Passo óleo nas minhas flautas de plástico, o flautista Mr. X, que toca no grupo Y ensemble que disse que era importantíssimo!;
  • Não passo óleo nas flautas pois me falaram que podem incendiar sozinhas;
  • Um grande segredo para melhorar o som da flauta é passar muito óleo no pé da flauta;

Obviamente não vou lembrar de tudo que já ouvi a respeito, e vou tentar esclarecer aqui me baseando em duas diretrizes:
1. a ciência e,
2. minha própria experiência.
De qualquer forma, não pretendo ter a verdade absoluta sobre este assunto.

A escolha do óleo

Primeiramente, devemos falar sobre qual óleo deve ser escolhido. As opções são inúmeras, por isso vou comentar aqui os que já ouvi dizer serem usados em instrumentos de sopro de madeira:

  • Óleo de amêndoas
  • Óleo de gergilim
  • Óleo de semente de uvas
  • Azeite de oliva
  • Óleo de canola
  • Óleo de soja
  • Óleo de linhaça
  • Óleo mineral
  • Óleo Johnsons (aquele para bebês)
  • Óleo de terebentina

Dentre estes óleos, podemos dizer que existem dois tipos:
1. os óleos secantes (a maioria dos óleos vegetais estão nesta categoria),
2. os óleos não-secantes (óleos minerais). Os óleos que não secam costumam ser mais inertes quimicamente quando comparados com os óleos secantes.

Novamente, não tenho a solução ideal para todos os flautistas, mas como as opções são inúmeras, vamos discutir primeiramente o objetivo de passar óleo no instrumento.

A madeira é basicamente constituída de dois elementos: a celulose e a lignina ou lenhina. São pequenas partículas de celulose “coladas” entre si por partículas de lignina, formando uma estrutura parecida com uma parede de tijolos. A celulose absorve água com facilidade mas ignora o óleo. A lignina absorve óleo e ignora a água.

Quando a madeira recebe uma camada de óleo, a lignina recebe o óleo enquanto a celulose ignora, da mesma forma que uma esponja recebe um líquido qualquer. Depois das primeiras camadas de óleo, a madeira já não o absorve mais. A sensação que temos dessa absorção contínua, é falsa, o que acontece é simplesmente a secagem do óleo da superfície da madeira.

Quando um óleo não-secante é usado, ele é simplesmente removido depois de uma ou duas limpezas, a única porção de óleo que restará, estará contida em alguns poros superficiais da madeira.

Quando um óleo secante é usado, a situação é bem diferente. Ao secar, o óleo deixará uma fina camada de um polímero na superfície da madeira (processo de polimerização), podemos chamar de verniz, que a cada nova camada se aglutinará à camada anterior. Quando limpamos o instrumento com um pano, parte deste verniz se solta e faz com que a superfície fique porosa, de forma que a água líquida não consegue penetrar na madeira, porém o vapor e o ar consegue penetrar, uma situação desejável, pois desta forma, a madeira consegue se adaptar às mudanças de clima, umidade e temperatura.

Após vários ciclos, esta camada de verniz se torna muito lisa e polida, e pode fazer variar o diâmetro interno do instrumento, que traz uma sutil variação no timbre do mesmo. Isto é algo positivo ou negativo? Embora muito difícil de afirmar, provavelmente é positivo, pois tenho visto muitos luthiers (construtores de instrumentos) passando um verniz muito forte e liso na cabeça das flautas.

Nos casos de flautas envernizadas internamente, não parece razoável a necessidade de passar óleo frequentemente, mas talvez seja interessante passar ocasionalmente um óleo não-secante simplesmente para manter a limpeza do instrumento.

Nas flautas não envernizadas parece razoável passar um óleo secante com certa frequência, para que a camada de verniz seja formada e proteja a madeira.

Em minha experiência pessoal, já usei óleo de amêndoas, gergelim (cru, não torrado), semente de uvas e linhaça, além de ter misturado um ou dois tipos (todos são óleos secantes). Tenho contato com pessoas que usaram todos os tipos mencionados acima.
O que percebo é que o óleo de amêndoas costuma deixar o instrumento ligeiramente grudento com o tempo. O óleo de gergelim é mais fino e não deixa este aspecto, além de intensificar o cheiro da madeira. O óleo de semente de uva (mais comum na Europa que no Brasil) é parecido com o óleo de gergelim, porém tem menos cheiro. O óleo de linhaça é o que tenho usado de alguns anos para cá.

Um aspecto que é importante para muitos flautistas é o cheiro ou gosto do óleo, afinal ao tocar colocamos a flauta na boca e isso pode ser algo que realmente interfira em seu bem estar ao tocar. Por uma questão de gosto pessoal, pode ser que uma pessoa goste de determinado óleo e não goste de outro. Eu pessoalmente evito qualquer tipo de óleo saborizado ou com aroma, por razões óbvias. É muito comum encontrarmos óleo de amêndoas com cheiro de perfume, evite! Da mesma forma, alguns escolhem passar azeite de olivas virgens apenas pelo cheiro.

Já perguntei sobre isso para vários luthiers, construtores de flauta doce, oboé, e outros instrumentos de sopro. As respostas são diversas, mas vou comentar uma que fez mais sentido para mim:

Gustavo e Toshi Hasegawa - Out. 2010Em 2010, levei meu oboé barroco para uma revisão com o luthier Toshi Hasegawa. Eu passo óleo no meu oboé com a mesma frequência que passo em minhas flautas doces. Chegando lá, quando o Toshi viu meu instrumento me deu uma bronca, pois eu havia passado óleo de amêndoas nele (naquela época eu já usava óleo de linhaça há cerca de 1 ano), e me proibiu de passar óleo de amêndoas novamente, com o argumento que este óleo se deposita nas paredes internas e muda o diâmetro do instrumento (conforme disse acima), e que deveria passar o óleo de linhaça, pois a linhaça não chega a mudar o diâmetro interno do instrumento.

A partir de então, oficializei que só passaria óleo de linhaça em meus instrumentos. Este óleo é facilmente encontrado em supermercados e/ou em lojas de produtos naturais.

Outra precaução: algumas pessoas são alérgicas a alguns óleos. Recentemente li em um fórum estrangeiro que alguém estava com alergia de suas flautas, e o que causava alergia era o óleo usado: óleo de linhaça cozido, com extração química (imagino que seja aquele usado em pintura a óleo). Por isso, use sempre algum óleo comestível, pois desta forma terá certeza que não causará mal algum, exceto em caso de alguma alergia grave.

Devo passar óleo com qual frequência?

Algumas pessoas dizem que devemos passar óleo toda semana, ou mesmo todos os dias, e outras que devemos passar apenas 1 ou 2 vezes ao ano.

Se passamos óleo muito frequentemente, o óleo não chega a se polimerizar ou formar a camada de verniz, e permanece na forma líquida na superfície do instrumento. A cada limpeza, o óleo sairá no pano, porém é reposto regularmente. Para esta abordagem são recomendados óleos que se polimerizam menos, como por exemplo óleo de coco ou azeite de olivas.

Se passamos óleo menos frequentemente, cerca de 2 a 3 vezes ao ano, o excesso de óleo é removido em seguida, e o óleo se polimeriza (cria a camada de verniz) em cerca de uma semana, porém este processo de polimerização continua por muitos meses depois da aplicação do óleo. Durante este tempo, a limpeza vai remover o óleo que ainda estiver líquido, mas vai polir a camada de verniz que já estiver formada. Para esta abordagem, é recomendado o uso de óleos com alto teor de polimerização, como óleo de amêndoas ou linhaça.

É importante não misturar entre as duas abordagens, com o risco de ter uma flauta melequenta ou sem proteção.

Por que passar óleo?

Depois de tudo o que apresentei anteriormente, faço aqui um resumo das razões de passar óleo em todos instrumentos de sopro de madeira:

  • Protege o instrumento da umidade inerente à condensação durante a prática;
  • Protege o instrumento de fungos, pois evita que a umidade se acumule na madeira;
  • Facilita a limpeza do instrumento, quando esta for necessária;
  • Evita que se abram rachaduras na madeira;
  • Ajuda que o instrumento seja mais estável referente à variação do clima;
  • Mantém o instrumento mais bonito e brilhante;
  • Protege sem impedir a “respiração” da madeira, pois esta permanece porosa;

Como passar óleo na flauta:

Como já mencionei, eu uso óleo de linhaça em meus instrumentos, e por isso passo óleo cerca de 3 vezes ao ano. Tenho especial cuidado antes de viagens longas, quando os instrumentos sofrerão com despressurização em viagens aéreas ou mudança brusca de clima; nestes casos eu passo óleo 1 ou 2 semanas antes da viagem.
Segue uma lista do que vamos precisar para esta tarefa:
Materiais para aplicar óleo

  • Duas toalhas velhas ou pano de algodão (pode ser uma camiseta velha);
  • Um pincel pequeno ou um limpador de cachimbos;

e

  • Um pedaço de tecido pequeno – tecido de algodão é melhor;
  • Uma vareta de limpeza (normalmente acompanha o instrumento novo);

ou

  • Uma escova com cerdas de nylon macio para limpeza de tubos, com diâmetro apropriado ao instrumento. (A Moeck e a Mollenhauer comercializam kits com estas escovas);

Primeiro passo:

O instrumento precisa estar completamente seco antes de colocarmos qualquer óleo. Isto significa que a flauta deve estar sem ser tocada por pelo menos 12 horas, em um ambiente seco e arejado.

Como envolver as sapatilhasAs flautas que possuem chaves devem ter todas as sapatilhas protegidas do contato do óleo. Isso pode ser feito envolvendo-as com filme de PVC (aquele transparente usado na culinária), ou desmontando cuidadosamente as chaves antes de começar a manipular o óleo. Caso o óleo se acumule nas sapatilhas, estas ficarão duras e ressecadas e perderão a característica de vedar bem os furos. Também pode acontecer das sapatilhas ficarem grudentas, e comprometer o funcionamento do mecanismo.

Flautas secando e escorrendo o excesso de óleoPreparar um espaço onde as flautas possam secar, em posição vertical, escorrendo o excesso de óleo.

Segundo passo:

Devemos passar óleo no pé e no corpo da flauta, por dentro e por fora, de forma que o óleo forme uma fina camada por toda a superfície da madeira, inclusive dentro dos furos. Use uma das toalhas ou pano de algodão para passar óleo externamente, e mantenha o outro seco e limpo.

Regiões que absorvem mais óleoTodas as partes da madeira onde as fibras terminam, têm uma maior absorção de líquidos. Isto acontece na parte de baixo do pé, no bocal, na janela, nas decorações das juntas e na superfície interna dos furos. É muito comum que estas partes fiquem secas com maior rapidez após a aplicação do óleo, por causa disso, a aplicação nestas partes deve ser feita em maior quantidade.

Anéis de osso e marfimFlautas com anéis ou decoração de osso ou marfim devem ter as partes de osso ou marfim protegidas do óleo, pois este fará com que estas partes fiquem amareladas ou ligeiramente translúcidas. Exceto à aparência, o óleo não causa nenhum problema no osso ou marfim.

 

Encaixe com linhaDevemos evitar o excesso de óleo nas juntas feitas com linha. Podemos passar óleo, mas nunca deixe a linha enxarcada com óleo, pois a linha incha com o óleo e pode fazer rachar a junta.

A cabeça da flauta

Existem alguns cuidados especiais ao passar óleo na cabeça da flauta, que é responsável pela produção do som no instrumento.

Bloco - chanfro

Bloco - curvaO bloco da flauta, aquele pedaço de madeira diferente do resto da flauta que fica no bocal, normalmente feito de cedro rosa, além de ser responsável por guiar o ar até a janela e pela produção do som, também é responsável por absorver o excesso de água que condensa dentro do canal da flauta, evitando assim que a flauta fique entupida. Por esta razão, devemos tomar muito cuidado para que o óleo não entre em contato com o canal, nem com o bloco nas proximidades do canal, onde existe um chanfro. Este chanfro pode ser chamado de “alma” pois qualquer variação muda completamente o som do instrumento.
Por isso, ao aplicar óleo na cabeça devemos fazer da seguinte forma:

  • Aplicar o óleo externamente, sem que o óleo entre no canal da flauta ou na janela;
  • Aproveite este momento para esfregar o bocal da flauta, no local onde encostamos os lábios, para limpar a madeira que normalmente fica ressecada nesta região. Não use muito óleo, evitando assim que ele escorra para o canal.

Óleo na cabeça

  • Com a cabeça na posição vertical e bocal para cima, aplicar o óleo internamente, de forma que o óleo não toque o bloco ao escorrer pela madeira;

 

 

 

  • Óleo na janelaCom um pincel ou com o limpador de cachimbo, aplicar o óleo na janela da flauta fazendo o acabamento delicado, sempre evitando que o óleo entre no canal ou toque a madeira do bloco;

Terceiro passo

Deixar as partes desmontadas, na posição vertical, por pelo menos 12 horas, mas o ideal é manter assim por 24 horas.

Após cerca de 30 minutos ou uma hora após passar o óleo, verifique se a flauta já está seca. Caso esteja seca, repetir o passo 2. Isso é comum de acontecer quando o instrumento é novo e necessita de mais óleo, pois a madeira ainda está muito seca e absorveu pouco óleo. Após uma ou duas aplicações, já não é mais necessário.

Se após 30 minutos ou 1 hora a flauta permanecer visivelmente oleosa, basta deixar ela descansar por mais 23 horas.

Quarto passo

Limpando o excesso de óleoAgora é necessário limpar todo excesso de óleo que tenha restado no instrumento. Para isso, use a toalha seca e limpa, ou o pano de algodão que estava separado.
Nunca esqueça desta parte. É extremamente importante limpar o excesso de óleo, pois se não fizer, a flauta pode ficar grudenta e rançosa.
Esfregue o pano limpo por toda a superfície externa da flauta, que ficará com um aspecto brilhoso e limpo. Normalmente a madeira fica ligeiramente mais escura do que antes, com veios mais vivos e bonitos.

Eu não costumo limpar o óleo da parte interna da flauta, pois este será limpo toda vez que eu secar o instrumento após tocar.

Quinto passo

Protegendo as sapatilhas do óleoPara os instrumentos que possuem chaves, devemos colocar as chaves de volta, e manter um guardanapo de papel entre a madeira e a sapatilha. Este guardanapo é responsável por secar o excesso de óleo remanescente, e evitar que a sapatilha absorva este óleo.

Eu costumo manter guardanapos cortados na caixa dos meus instrumentos que possuem chaves, assim, ao guardar as flautas na caixa, coloco os guardanapos sob as sapatilhas. Após alguns dias, os guardanapos costumam ficar oleosos ou amarelados, neste momento eu sei que devo trocá-los por um guardanapo novo.

Conclusão

É muito importante cuidar de sua flauta doce, e para todas flautas de madeira, o óleo faz a proteção da madeira contra a umidade e outras coisas.

Não é necessário passar óleo nas flautas de plástico!!! A não ser que queira ter uma flauta grudenta ou escorregadia.

The good oil

Em anexo coloquei um artigo (em inglês) de onde eu tirei as informações mais científicas sobre a escolha do óleo. Vale a pena ler o artigo original, e tirar suas próprias conclusões!
Em breve um novo artigo sobre como devemos limpar nossa flauta!