A música é o caminho, não o objetivo

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Em fevereiro/2023, Jasmin Röder, flautista e também colunista da revista alemã Tibia especializada em flauta doce, nos escreveu solicitando uma entrevista.

A entrevista foi publicada em maio/2023, e agora disponibilizamos uma tradução aos nossos leitores em português e em inglês.

Retratos: A música é o caminho, não o objetivo

Artigo original: https://www.moeck.com/en/tibia/tibia-online/artikel.html?article=2426

ou baixar o PDF aqui.

Jasmin Röder em conversa com o Quarteto de Flautas Doces Quinta Essentia

5 de maio de 2022 Jasmin Röder / Foto: © Paulo Rapoport

O Quarteto Quinta Essentia, fundado em 2006, é um conjunto de flautas doces brasileiro. Sua formação atual, composta por três [flautistas] mulheres e um [flautista] homem, inspira novas composições e promove a cultura brasileira e a música de câmara em diversos países. O quarteto é atualmente composto pelos membros fundadores Renata Pereira e Gustavo de Francisco, além de Francielle Paixão e Marina Mafra.

Desde a sua fundação em 2006, vocês já conquistaram muito. Seu conjunto ganhou diversos prêmios, lançou uma série inteira de CDs e também ministra masterclasses e realiza concertos. Qual é a receita do seu sucesso?

Nós combinamos trabalho árduo com planejamento de longo prazo e o deixamos “maturando” por 17 anos.

Aprendemos muito ao longo desses anos. No início, apenas queríamos ter um quarteto profissional de flauta doce, dando concertos e apresentando a flauta doce como um instrumento musical sério. Naquela época, não tínhamos muitos instrumentos: cada um de nós tinha apenas uma flauta soprano em 442Hz, uma contralto em 442Hz e uma contralto em 415Hz; além disso, uma flauta baixo de plástico, uma tenor de plástico e uma tenor de madeira para o grupo. Nenhum desses instrumentos era realmente bom, e sabíamos que seria suficiente para começar, mas precisaríamos investir muito mais em instrumentos para melhorar nosso som. Por muitos anos, 80% da nossa renda com concertos foram reinvestidos em instrumentos novos e melhores. A primeira prioridade era trocar os instrumentos de plástico por instrumentos de madeira e, depois disso, adquirir as flautas baixos quadradas e maiores para nos permitir tocar um repertório mais amplo. Agora temos mais de 60 instrumentos na coleção, em 3 afinações diferentes, incluindo instrumentos Renascentistas, Barrocos e Modernos.

Muitos grupos de flauta doce gostam de tocar um repertório tipo “tutti-frutti”, interpretando peças de todos os períodos históricos no mesmo programa. Nós também fizemos isso no início, e nosso primeiro álbum, “La Marca”, mostra isso. Depois disso, aprendemos algo que fazemos de forma diferente de todos os outros grupos de flauta doce: tocamos música brasileira e, quando tocamos repertório europeu, o fazemos de maneira diferente dos outros grupos; isso torna nossas apresentações algo único, e gostamos de fazer dessa maneira. Também aprendemos que é melhor desenvolver repertórios temáticos, reunindo peças de música em torno de uma ideia, um estilo ou um período da história.

Além de tudo isso, temos ensaios semanais, independentemente de termos compromissos ou não, e tratamos a música como uma linguagem, e por isso tocamos de cor, mesmo quando há partituras no palco. Para entender essa questão, você pode imaginar se acreditaria na história interpretada por um ator que está lendo seu texto no palco e compará-lo com aquele que interpreta tudo de cor. Claro, além dessas, existem também outras questões que decorrem de tratar a música como uma linguagem.

Como são desenvolvidos os novos programas de concertos ou ideias para CDs? Quem foi a mente criativa por trás do seu último CD “Tunes!”? Uma ideia de CD não convencional onde trilhas sonoras são trazidas à vida.

Muitas ideias nasceram há muitos anos e, ao longo do tempo, conseguimos concretizar algumas delas. A ideia por trás de “Tunes!” surgiu por volta do ano de 2012, mas muitos projetos surgiram antes dela e só conseguimos realizá-la agora. Algumas músicas estavam em nossas mentes desde então, como os temas do Mario e do Zelda, e precisamos fazer pesquisas para encontrar outros temas, como o tema do Skyrim, por exemplo. A mente por trás dessa ideia e também dos arranjos é Gustavo de Francisco.

Os temas de videogames de 8 bits, como Zelda e Mario, eram muito naturais de serem transcritos para um quarteto de flauta doce. Até mesmo o som do jogo é semelhante ao som da flauta doce, e muitos desses temas foram compostos para quatro vozes. Não estávamos restritos apenas a jogos, estávamos em busca de músicas que estivessem gravadas em nossos corações, ativando memórias dos anos 80 e 90 e de nossa infância, é por isso que escolhemos também alguns temas de desenhos animados e alguns de programas de TV e jogos mais atuais. Acreditamos que pelo menos dois temas de “Tunes!” você deve ouvir, que são “Monster’s Inc.” e “A Bela e a Fera”.

Em 2016, 10 anos após o nascimento do grupo, gravamos “A Arte da Fuga” de J. S. Bach. Tínhamos essa peça em mente desde o início em 2006, mas era impossível tocá-la em nossos instrumentos daquela época porque gostaríamos de tocá-la na afinação de 415Hz, e também a extensão de cada contraponto da obra é desafiadora para as flautas doces, às vezes ultrapassando em muito a extensão de 2 oitavas e uma segunda que os instrumentos barrocos possuem. Em 2014, adquirimos nosso grande-baixo em 415Hz, o que nos permitiu realizar esse projeto. As transcrições para flautas doces foram feitas por Gustavo a partir de manuscritos de Bach quando disponíveis, e da primeira edição para os movimentos que não estão no manuscrito de Bach. Tivemos que adquirir mais flautas para completar este projeto, uma contralto barroca em sol, uma soprano em si bemol e uma tenor em si bemol, todas com afinação A=415Hz.

Para o “Caboclo”, a ideia era focar no repertório brasileiro do século XX, apresentando grandes e conhecidos compositores, ótima música e flautas doces modernas. Temos duas peças originais para flautas doces, sendo uma delas dedicada ao grupo, todo o resto são músicas para cordas, piano, metais ou voz, que foram arranjadas para flautas doces modernas por Gustavo, utilizando a extensão ampliada proporcionada por esses instrumentos.

Como vocês costumam organizar os programas de CDs ou de concertos? Existe uma certa ordem, as tarefas são distribuídas no grupo? E vocês ensaiam regularmente ou em blocos? Quais são os passos necessários desde a ideia até o programa final?

Nós ensaiamos regularmente, dedicando um dia inteiro por semana para os ensaios. Gustavo fica responsável pelos arranjos e pela parte de agenciamento/produção, enquanto Renata cuida do marketing e das redes sociais. Todos nós tocamos o repertório de cor, o que é um desafio por si só. O fato de nos encontrarmos regularmente é crucial para manter a criatividade e ter novas ideias sobre repertórios e outras questões. Trabalhar em blocos não é ideal para a forma como produzimos nossa música.

É difícil dizer quantos passos são necessários desde a ideia até o programa final, porque cada repertório é único, e os desafios são diferentes para cada um. De qualquer forma, temos uma ideia e precisamos pesquisar formas de realizá-la; às vezes, precisamos de mais instrumentos, outras vezes, de outros recursos (como projeções ou equipamento de palco) e a própria música apresenta seus desafios. Geralmente, quando estamos ensaiando um novo repertório, alguém já está pensando no que virá a seguir, pesquisando novas músicas e fazendo arranjos, entre outras coisas. Às vezes, o arranjo não funciona quando tocamos e precisamos fazer ajustes.

Poderíamos resumir da seguinte maneira: ter uma ideia, pesquisar repertório, ouvir música, fazer os arranjos, ensaiar cada música, pensar no marketing e textos, ensaiar, testar todas as músicas juntas, fazer um ensaio geral, gravar um álbum. O último passo em si envolve muitos outros passos.

Desde o início da pesquisa de repertório até o concerto de estreia, pode facilmente durar mais de 2 anos. Do primeiro ensaio ao concerto, cerca de um ano.

Grande parte da sua música é tocada de memória? Qual é a ideia por trás disso? Onde você vê as vantagens dessa prática?

Nosso objetivo é tocar tudo de cor ou de memória. Às vezes, na estreia de um novo repertório, usamos as partes, mas todos os músicos já estão tocando de cor.

Prefiro dizer “de cor” em vez de “de memória”; em português, dizemos “decor”, que significa o mesmo que em inglês e francês, “de coração”. Isso faz parte da ideia por trás disso, porque quando fazemos algo de cor, significa que todo o nosso corpo e mente estão conectados para realizar a ação, e não precisamos de mais nada, apenas de nós mesmos. Isso melhora a autoconfiança e nos permite ter uma ótima comunicação com a plateia.

Como mencionado antes, a música é uma linguagem, e quando estamos falando [ou tocando], não procuramos as palavras no dicionário; nem um ator lê seu papel se quiser mexer com o humor da platéia, ou mesmo um dançarino nunca lê os passos no palco. Então, para fazer música, comunicamos uma mensagem por meio das notas, ritmos, articulações e mais, e para isso, precisamos fazê-lo de cor. Há algo mais: do ponto de vista da plateia, as partituras podem ser uma barreira que cobre (ou protege) o artista, inibindo uma ótima comunicação e dificultando ver o que o artista está realmente fazendo no palco.

Para o aprendizado musical, tocar de cor também é uma grande vantagem. Mas eu poderia escrever um livro inteiro sobre isso, e poderia ser um tema para a próxima entrevista.

Como podemos imaginar a cena da flauta doce no Brasil? A flauta doce é um instrumento aceito e popular? Muitos jovens escolhem a flauta doce?

Neste aspecto, acredito que nenhum país no mundo tenha a tradição que vocês têm na Alemanha, e também, como têm nos Países Baixos. Talvez tenhamos uma grande comunidade em Taiwan no futuro próximo, onde vejo muitos jovens flautistas tocando muito bem.

No Brasil, muitas escolas regulares utilizam a flauta doce nas aulas de música, e também temos muitos entusiastas da flauta doce. Nas escolas de música e conservatórios, temos bons professores de flauta doce, mas artisticamente, não há muitos flautistas doce ativos proporcionalmente ao tamanho do país, quando comparado com a Europa.

Existem muitas crianças e adolescentes que escolhem a flauta doce como instrumento, mas muitos deles desistem ou mudam de instrumento depois que alguém sugere que toquem em uma orquestra ou um instrumento de música pop.

Acredito que a flauta doce sempre será um instrumento muito atraente devido à sua simplicidade, baixo custo e tamanho compacto. O que devemos fazer, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, é inserir a flauta doce em cenários musicais nos quais ainda não está presente, como a música pop, a orquestra ou na música de câmara com outros instrumentos “canônicos” como cordas, piano e voz. Dessa forma, teremos a flauta doce sendo apresentada para públicos maiores.

Existem projetos ou metas dos sonhos que vocês gostariam de alcançar no futuro?

O projeto dos sonhos é que a Quinta Essentia ganhe vida própria, não dependendo de nós para continuar, mesmo que decidamos nos aposentar. Ao longo desses anos, muitas pessoas tocaram conosco, e dedicamos muito esforço e energia para manter o grupo quando alguém decidiu sair. Não é uma tarefa fácil. De qualquer forma, foi gratificante fazer cerca de 25 concertos por ano, uma turnê internacional por ano, tocando em todos os continentes até agora, e nossa maior plateia para um concerto foi de cerca de 2000 pessoas. Desculpe, um engano, ainda não tocamos na Antártica, deveríamos tocar para os pinguins lá?

Para o futuro próximo, temos dois novos programas que ainda não gravamos: “Estações Impressionistas”, com obras de Ravel, Debussy, Satie, Piazzolla e Boulanger, e “Abendmusik”, com obras de Buxtehude, Muffat, Pachelbel, Telemann e Bach. Toda essa música é realmente especial, e os arranjos no programa impressionista são realmente incomuns, misturando flautas doces modernas e renascentistas.

O que você acha que um bom conjunto de flauta doce precisa? É o suficiente apenas tocar a música?

Nunca é suficiente apenas tocar bem. Acredito que todos nós conhecemos pessoas que tocam bem um instrumento, e isso não é suficiente para ter sucesso neste mercado, especialmente no mundo “Lalaland” da flauta doce. Precisamos ser empreendedores, o que significa que devemos cuidar do que fazemos da mesma forma que os gestores de negócios cuidam de suas empresas.

Precisamos tocar bem, porque este é nosso melhor e mais valioso recurso; mas isso não significa nada se não conseguirmos transformar esse recurso em algo que as pessoas estejam interessadas. Isso exige planejamento, marketing, produção, investimento, lidar com diferentes pessoas, aprender outros idiomas, assumir riscos e enfrentar tudo isso fazendo tudo por diversão. No final, estamos conectando pessoas usando a música para isso. A música é o caminho, não o objetivo final.

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