Consort Renascentista

Flauta doce é instrumento transpositor?

08/

02/21

Muitas pessoas perguntam se a flauta doce é um instrumento transpositor. Essa pergunta faz algum sentido, já que temos flautas de diferentes tamanhos, onde seu tubo com todos os furos fechados resultam em notas diferentes dependendo do tamanho do instrumento.

Mas antes de responder a essa pergunta, é bom definir o que é um instrumento transpositor:

Instrumento transpositor é aquele que, por qualquer razão, tem suas notas anotadas na partitura em altura diferente da nota que soa o instrumento.

Em todas partituras de instrumentos transpositores e para evitar ambiguidades, é necessário descrever a tonalidade do instrumento que vai tocar aquela partitura. Se for um clarinete em Si b por exemplo, o músico sabe que onde estiver escrito Dó, ele deve tocar um Si b.

Isso não acontece em nenhuma flauta doce. Bem… quase isso.

Na verdade, a soprano, sopranino e baixo são instrumentos transpositores de oitava, pois essas flautas soam uma oitava acima do que está escrito na partitura. Mas ainda nesses instrumentos, um dó é sempre um dó. Instrumentos transpositores de oitava, como por exemplo o violão que soa uma oitava abaixo do que está escrito na partitura, quase sempre não são considerados transpositores por outros músicos.

Como vemos, o dedilhado que fazemos nada tem a ver com o instrumento ser transpositor ou não.

Vamos conhecer alguns exemplos

A flauta tenor é do mesmo tamanho da flauta transversal e por isso a sua escrita é exatamente a mesma da flauta transversal.

A flauta soprano tem o tamanho do piccolo, e por isso, tem o som oitava acima da nota que está escrita na partitura.

Exemplos de instrumentos transpositores são o saxofone, a clarineta, o trompete e a trompa.

No saxofone, por exemplo, todos os instrumentos da família (soprano, alto, tenor, baixo, barítono) têm exatamente a mesma escrita, sempre em clave de sol. A nota escrita na partitura está relacionada diretamente ao dedilhado usado, e o som que sai é diferente do que está escrito.

Na flauta doce não funciona da mesma forma. Cada flauta tem uma escrita própria, com cada nota associada ao som que sai do instrumento, mas o dedilhado de cada nota é diferente em instrumentos diferentes.

Vemos acima a tessitura e como escrevemos a partitura para diversos instrumentos da família da flauta doce. Aquelas que possuem o número 8 ou 16 acima ou abaixo da clave, indicam uma transposição de oitava.

Mas por que existem instrumentos transpositores?

Será que há uma razão histórica?

A resposta é diferente para instrumentos diferentes.

Nos metais, que só tinham notas da série harmônica natural, eram transpositores desde o início. As válvulas foram inventadas depois. Naquela época, o compositor sempre usava uma trompa na tonalidade da música que estava escrevendo, e o instrumentista adicionava uma extensão no instrumento, que alterava sua tonalidade. Para que a leitura não se alterasse a cada música que era tocada, a partitura era transcrita sempre.

Nas madeiras a razão é diversa, e devemos levar vários fatores em questão.

Instrumentos construídos na França eram afinados em um diapasão diferente quando comparados com os italianos. Às vezes um tom abaixo, às vezes uma terça menor abaixo, ou mesmo uma terça maior abaixo. A França tinha a tradição de construção de instrumentos de sopro (Familia Hotteterre principalmente) enquanto a Itália tinha tradição de instrumentos de corda.

Para que instrumentos de origens diferentes pudessem tocar em conjunto, o compositor transpunha as partes para cada um.

Há cantatas do Bach onde o coro e o órgão estão em um tom, as cordas em outro, e os sopros em outro, já que a origem de cada instrumento era diferente.

Isso fica claro em algumas cantatas do Bach, por exemplo na BWV 31, BWV 150 e BWV155, onde Bach diferencia dois instrumentos: Fagotto (de origem italiana) e Bassono (de origem francesa), ambos chamados hoje em dia de fagote que sabemos que não é um instrumento transpositor. Mas nesse caso, notamos que cada um desses instrumentos estão com notação em tons diferentes do resto dos instrumentos, indicando que cada um deles soava uma terça menor de diferença entre eles. Para saber mais, recomendo a leitura do livro “The History of Performing Pitch” de Bruce Haynes, onde em seu capítulo 6, o autor explica em detalhes esses casos nas cantatas de Bach.

No período barroco, a flauta transversal (chamada de traverso) era um instrumento em ré, pois o traverso com todos furos fechados soa a nota ré, mesmo assim, a notação sempre foi em dó, isto é, sem transposição. Posteriormente, conforme as chaves foram adicionadas, a flauta transversal ganhou mais notas graves, chegando até o si grave, mesmo assim a escrita continuou sendo em dó.

Existe a questão das famílias de instrumentos de tamanhos diferentes, também chamada de Consorts. A flauta doce tem essa tradição desde a Idade Média e da Renascença, assim como outros instrumentos como o shawn, a viola da gamba, a sacabuxa, onde os instrumentos geralmente tocavam dobrando as partes de um coro, seja na música da igreja, seja na música profana, e dessa forma, como essa música vem da tradição da música vocal, onde nenhuma das partes é transpositora.

Já demos o exemplo do saxofone, mas isso também acontece na família da flauta transversal, da clarineta, do oboé, mas não na flauta doce… O oboé também tem uma família de instrumentos de tamanhos diferentes que já era usada desde o séc. XVIII, sendo o oboé (em dó), o oboé d’amore (em lá bemol), o oboé da caccia ou taille (em fá), e cada um desses instrumentos tinha sua leitura transposta desde aquela época.

Mas por alguma razão, a flauta doce não funciona da mesma maneira. Talvez isso aconteça pela tradição de consorts da Renascença, ou seja porque a flauta doce padrão, ou também chamada de flauta doce de concerto é a flauta contralto, com o Fá como nota mais grave, e não a soprano ou tenor com Dó na nota mais grave.

Outra provável razão para isso é que a flauta doce não estava associada ao ambiente da música sinfônica no período clássico e romântico; a flauta doce voltou a ser usada no séc. XX, principalmente após a década de 1960 com o movimento chamado de Música Antiga ou Música Historicamente Informada. Diferente da flauta transversal, oboé e clarineta, a flauta doce teve uma história diversa em seu desenvolvimento. Assim, a flauta doce usada hoje em dia é uma cópia do instrumento usado em meados de 1730, quando as flautas doces não tinham suas partituras transpostas por causa de seus diferentes tamanhos.

Para conhecer toda a família da flauta doce, recomendamos a leitura do artigo abaixo:

A família da flauta doce

 

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