Quando a música faz sentido

Quando falamos sobre o ensino de música, seja teórico ou voltado a um instrumento como a flauta doce, muitas vezes discutimos o currículo, ou o programa que deve ser ensinado. Seria isso suficiente?

Durante o período que o estudante de música inicia seus estudos até se formar, é dada muita ênfase no que ele deve aprender durante o curso, mas pouco é ensinado sobre as habilidades ou comportamentos que fazem com que a música tocada seja bela e toque o coração do público, isto é, o que realmente faz a diferença na vida de um músico.

Componentes da musicalidade

Façamos uma reflexão: O que faz que alguém seja considerado um bom músico? Eu sei, não é fácil responder essa pergunta de maneira objetiva, e creio que essa pergunta não tenha muito a ver com estilo musical, mas sim, com a prática musical. Quando penso num músico que admiro, algumas coisas são comuns em quase todos eles:

  • Toca/canta perfeitamente afinado
  • Toca/canta com som lindo
  • Total domínio da técnica do canto/instrumento
  • Parece fácil tocar, parece mágica
  • Demonstra prazer em fazer música
  • Tão fluente na técnica que torna a música uma linguagem, parece que “toca sem sotaque”.
  • Interpreta a música com aparente liberdade de tempo e ritmo, embora a música permaneça no tempo
  • Pode até seguir regras estéticas do seu estilo, mas sempre quebra essas mesmas regras surpreendendo o público.
  • Corre riscos artísticos
  • Improvisa, no sentido amplo do termo, não apenas em sessões de improvisação
  • Se destaca da maioria, surpreendendo em momentos específicos.
  • Interpreta o texto musical de forma convincente, assim como um bom ator interpreta um texto
  • No caso de erro, além de não demonstrar, transforma o erro em ornamento

E o que isso muda em nossa prática da música?

Para àqueles que buscam melhorar a prática musical, procure incorporar cada um desses elementos em sua prática diária, e busque estratégias para chegar neste resultado.

Para os professores, é importante ensinar aos nossos alunos desde a primeira aula da importância de cada um desses fatores, e mostrar a eles o exemplo dessas boas práticas para que possam imitar e desenvolver essas habilidades. Só assim eles irão se desenvolver em todo o seu potencial.

E você, tem alguma contribuição a fazer? Tem algo a acrescentar? Deixe seus comentários abaixo!

A diferença entre amadores e profissionais

Li este artigo e acho que diz muito a respeito dos estudantes de música e daqueles que pretendem se profissionalizar no mundo da música e da arte, por isso resolvi traduzir e republicar o artigo, para que as pessoas no Brasil e nos países lusófonos possam ter acesso a este conteúdo.

Mantive os links secundários para os artigos originais em inglês, para que aqueles que buscam mais informação possam encontrar.

A diferença entre amadores e profissionais

Link original: https://www.farnamstreetblog.com/2017/08/amateurs-professionals/
Adaptação para português: Gustavo de Francisco

Por que é que algumas pessoas parecem ser extremamente bem sucedidas e realizam tantas coisas, enquanto a grande maioria de nós luta tanto sem conseguir progredir? A resposta é complicada e provavelmente multifacetada.

Um dos aspectos é a atitude mental – especificamente, na comparação entre amadores e profissionais.

Somos, em maioria, apenas amadores.

Mas quais as diferenças? De fato, as diferenças são muitas:

  • Amadores param quando conquistam alguma coisa. Profissionais entendem que uma conquista é apenas o início.
  • Amadores têm um objetivo, com começo, meio e fim. Profissionais desenvolvem um hábito.
  • Amadores pensam que podem ser bons em tudo. Profissionais entendem que possuem áreas de competência.
  • Amadores encaram as críticas e a liderança como alguém que os critica como pessoas. Profissionais sabem que possuem pontos fracos, procurando e valorizando as críticas construtivas.
  • Amadores valorizam performances isoladas, como um bom concerto ou um solo sem nenhum erro. Profissionais valorizam consistência, como fazer vários bons concertos e vários solos sem erros e com grande sucesso de público.
  • Amadores desistem no primeiro sinal de problema ou dificuldade e assumem que eles não são perfeitos. Profissionais encaram falhas como parte do processo do crescimento para o sucesso e maestria.
  • Amadores não fazem idéia de como melhorar as chances de obter bons resultados. Profissionais sabem como.
  • Amadores chegam nos ensaios para se divertir. Profissionais sabem que tudo o que acontece no ensaio, acontecerá na apresentação.
  • Amadores se preocupam em identificar suas fraquezas e melhorá-las. Profissionais focam em seus pontos fortes e em encontrar pessoas que são fortes onde eles são fracos.
  • Amadores acreditam que conhecimento é poder. Profissionais transmitem sabedoria e conselhos.
  • Amadores se preocupam em estarem certos. Profissionais se preocupam em obter os melhores resultados.
  • Amadores se focam nas primeiras impressões ou idéias. Profissionais se focam nas suas reflexões ou em pensamentos mais profundos.
  • Amadores acreditam que ganhos vultosos são resultado de seu talento. Profissionais entendem que ganhos vultosos são sorte.
  • Amadores se empenham para o curto prazo. Profissionais se empenham para o longo prazo.
  • Amadores tentam derrubar seus oponentes. Profissionais trabalham para fazer todos melhores que antes.
  • Amadores tomam decisões em comitês e por voto de forma que ninguém seja responsabilizado caso as coisas dêem errado. Profissionais tomam decisões como indivíduos e se responsabilizam pelas consequências de suas decisões.
  • Amadores culpam os outros. Profissionais se responsabilizam.
  • Amadores são inconsistentes. Profissionais são confiáveis.
  • Amadores vão mais rápido. Profissionais vão mais longe.
  • Amadores seguem com a primeira idéia que aparece na mente. Profissionais percebem que a primeira idéia raramente é a melhor idéia.
  • Amadores pensam de forma que não possa ser invalidada. Profissionais não.
  • Amadores pensam de forma absoluta. Profissionais pensam em probabilidades.
  • Amadores acham que a probabilidade que eles tenham uma boa idéia é alta. Profissionais sabem que essa probabilidade é baixa.
  • Amadores acham que a realidade é o que eles acham certo. Profissionais sabem que a realidade é o que é.
  • Amadores acham que desentendimentos são ameaças. Profissionais encaram eles como oportunidades de aprendizado.

Existem ainda uma infinidade de outras diferenças, mas elas podem ser efetivamente resumidas em duas coisas: medo e realidade.

Amadores acreditam que o mundo deve se moldar à maneira que eles gostariam. Profissionais entendem que precisam trabalhar com o mundo da forma que o mundo é. Amadores têm medo – medo de serem vulneráveis e honestos consigo mesmos. Profissionais se sentem capazes de lidar com praticamente qualquer coisa.

Deixando a sorte de lado, qual abordagem você pensa que vai garantir melhores resultados?

Temas para pensar:

  • Em quais circunstâncias você se comporta como um amador ao invés de um profissional?
  • O que está te puxando para trás? Você está lidando com pessoas que são amadoras enquanto deveria estar trabalhando com profissionais?
Notas de rodapé
  • As idéias contidas neste artigo são de Ryan Holiday, Ramit Sethi, Seth Godin entre outros.

A música eloquente

Já faz algum tempo que a música clássica ou erudita tem perdido seu público, pouco a pouco, e isso é um fenômeno mundial, e não acontece apenas no Brasil. Mas quais seriam as causas para esse fenômeno? Será que os artistas podem fazer algo para começar uma mudança nesse cenário?

Uma visão do passado

Quando olhamos para os grandes artistas do passado, vemos que a maioria deles estava muito conectada com o seu público, mesmo quando esse público era restrito a alguns círculos sociais (a aristocracia, a burguesia, as tavernas, praças públicas ou outros). Havia uma “comunicação” entre o artista e seu público através da arte e seu estilo, em alguns casos bastante inteligível, em outros de forma um pouco mais subjetiva. Alguns filósofos até diziam que a arte tem o poder de “mover os afetos”, isto é, inspirar sentimentos e humores diversos no público, e isso só é possível quando a arte “comunica” algo.

Outra característica que observo nos grandes artistas do passado – me refiro aos mestres não a qualquer artista – é que estes não buscavam apenas a aprovação do público (apesar da importância disso), mas estavam sempre à frente da estética do momento. Criavam obras que traziam alguns elementos novos, porém, com uma linguagem parecida com o que havia antes deles, de forma que o público pudesse ainda degustar de sua arte sem tanta estranheza. Todos estes artistas correram o risco de serem odiados pelo seu público ao quebrar regras estéticas já estabelecidas, e os que foram bem-sucedidos, definiram novos padrões estéticos que foram copiados posteriormente por outros artistas.

A arte “clássica” moderna

Por diversas razões, os artistas modernos perderam o seu foco no público, e passaram a colocar toda a sua energia criativa no objeto da arte em si mesmo. Este movimento de distanciamento entre artista e seu público fez com que a arte criada, muitas vezes, deixe de fazer sentido para o seu público. E quando a arte deixa de fazer sentido, ela deixa de ser consumida. Simples assim.

Um fenômeno muito recente em todo o mundo é a queda dos patrocínios estatais para a alta cultura, como a música de concerto, e esse assunto é bastante controverso. Acho que após tantos anos de mecenato estatal, que criou uma certa estabilidade e crescimento na criação artística por um lado, também influenciou para que os grandes artistas de nosso tempo deixassem de se focar no seu público, afinal, mesmo sem público o mecenato estatal permanece. Li recentemente uma frase de um grande músico que dizia “que o público é irrelevante”, o que me deixou chocado, pois se não fazemos música para o público, para quem fazemos?

Isso traz outros desdobramentos. Certamente, muitas atividades artísticas não sobrevivem sem algum tipo de mecenato ou patrocínio. Orquestras sem patrocínio estatal são raras, estes organismos dependem de apoio estatal ou de grandes empresas. Grande parte das iniciativas de formação artística, e nesse aspecto temos inúmeras boas iniciativas no Brasil, também dependem de dinheiro público, e ninguém em sã consciência milita pelo fim desses projetos. Em suma, arte de qualidade é cara pois demanda muito estudo e formação, e para que seja acessível ao público em geral, depende de patrocínio estatal.

Mas seria ingenuidade parar aqui. Será que os artistas não tem sua parcela de responsabilidade nesse processo? Afinal, se o público não vai mais às salas de concertos, por que um governante iria continuar a patrocinar uma orquestra? Será que um governante reduziria a verba do mecenato se isso influenciasse nos votos para ele na próxima eleição? E perguntar o que aconteceu primeiro, o fim do patrocínio ou a queda do público? É o mesmo que perguntar o que veio primeiro, o ovo ou a galinha.

Possíveis soluções

Não podemos esperar dos outros, exceto quando já tivermos feito tudo o que está ao nosso alcance. Mas como fazemos, hoje, para mudar esse cenário?

Eu costumo comparar as performances que atraem um grande público independente do estilo, com cada um dos concertos que eu frequento. Estou sempre atento às pessoas que estão na plateia, na divulgação do evento e no esforço dos artistas nessa questão, e na atitude do público em cada aspecto da performance. Cheguei à algumas conclusões parciais:

  • O público gosta de interagir com os artistas. Proibir essa interação não é positivo, seja na hora de aplaudir, seja na hora de fotografar ou filmar. Devemos encontrar um meio de dar vazão aos anseios do público sem prejudicar a performance.
  • Ninguém vai a um concerto para ver formalidade ou burocracia, mas sim, para curtir música, e se sentir tocado pelo artista. Por isso, quando os artistas demoram muito entre as obras (arrumando partituras, limpando instrumento, minutos afinando seus instrumentos) o público perde o interesse no espetáculo. Quando vemos um espetáculo que tem música do começo ao fim ou com pausas mais modestas, o nosso interesse se mantém vivo até o fim do espetáculo.
  • Quando um ator lê o seu texto com um papel, ele não transmite verdade na sua interpretação. Decorar o texto, para ele, é apenas o primeiro passo para uma boa interpretação, e os músicos populares sabem disso. Se a música é linguagem universal, e por isso comunica uma mensagem, temos que tocar o instrumento como o ator que interpreta uma peça, e não fazer apenas uma leitura como se toda a mensagem estivesse escrita na partitura.
  • O artista é responsável pela conexão com o seu público. Ninguém mais pode assumir esse papel.
  • Quando o artista não “comunica” através de sua arte, ele não se conecta com o público.
  • Quando o público sabe tudo o que vai ver e ouvir previamente, ele não precisa ir até o concerto.
  • Se o artista não corre riscos, ele não se conecta com o público.
  • O mundo atual depende da imagem. Quando o músico se esconde ou não cuida da própria imagem, o caminho para se conectar com o público é dificultado.
  • Muitas portas já foram abertas por outros artistas, e as referências na internet são infinitas. Fazer o mesmo que outros fazem não é o caminho para conquistar o próprio espaço. Temos sempre que buscar fazer mais e melhor.
  • O artista deve encontrar meios de “mover os afetos” de seu público, de emocionar, de criar uma conexão duradoura com a plateia. O “músico burocrata” não tem espaço num mundo conectado pelas redes sociais.
  • A música é importante, mas aquele músico que consegue impactar outros sentidos além da audição, está à frente dos demais.
  • O público que vai a um concerto quer ver os músicos executando sua arte. Barreiras visuais como pedestais e estantes de partituras atrapalham na experiência do público. O artista deve prezar por uma boa iluminação, que aguce os sentidos da platéia.
  • Alguns estudos afirmam que 93% da nossa comunicação é não verbal, por isso, a atitude do artista no palco comunica tanto quanto a sua própria arte. Ele deve ter o domínio completo de todo o espaço cênico, e de todos os gestos e expressões de seu corpo.
  • A habilidade de atingir novos públicos é importantíssima num mundo em constante mudança.

Deixe nos comentários a sua opinião, sobre o que de fato faz um grande músico que você admira ser diferente dos demais.

Três coisas simples que professores excelentes fazem

Pense a respeito do melhor professor que você já teve em toda a vida. Alguém que te inspirou, que te motivou, e provavelmente mudou a trajetória da sua vida.

Talvez ele tenha sido seu treinador, um professor do ensino médio ou da faculdade, ou mesmo um parente – isso não importa.

Agora, lembre do seu rosto.

Lembrou?

Quando você pensa nessa pessoa, qual dessas coisas vem à sua mente?

  1. Uma lição de vida que essa pessoa te deu
  2. Um objetivo pessoal que essa pessoa te ajudou a conquistar
  3. Em como essa pessoa fez você se sentir

Se você for como a maioria das pessoas, não há dúvidas: A resposta é C.

A lição extra deste exercício é simples: os melhores professores não são tão bons somente por que eles detém informações e as ensinam. Eles são bons pois eles criam conexões duradouras. Isso não tem a ver com as palavras que eles dizem, mas sim, tem a ver com a maneira que ele te faz se sentir.

Não falo aqui de meras habilidades inter-sociais. Estou falando aqui sobre a habilidade que David Foster Wallace estava se referindo quando escreveu isso:

Um líder real pode de alguma maneira fazer com que façamos algo que bem lá no fundo pensamos ser bom e que gostaríamos de fazer, mas não conseguimos fazer por nós mesmos. Esta é uma qualidade misteriosa, difícil de definir, mas nós a reconhecemos quando vemos, mesmo quando éramos crianças. Você provavelmente lembrará dessa qualidade em alguns de seus professores ou líderes, ou em alguma criança mais velha que você se espelhou querendo ser igual a ela. Alguns de nós lembraremos, quando crianças, de encontrar essa qualidade em um representante de classe, um escoteiro, um parente ou amigo de um parente, um supervisor de um estágio. Sim, todas essas são figuras de autoridade, mas eles representam um tipo especial de autoridade… A autoridade real de um líder é aquele poder que você dá voluntariamente a ele, cedendo isso sem ressentimento ou resignação mas com felicidade, pois isso te parece o certo a fazer. Mais profundamente, você quase sempre gosta de como esse líder faz você se sentir, enquanto trabalha duro para fazer coisas que nunca faria por si próprio sem a presença dele.

Isso nos leva a uma outra questão: como encontrar professores assim, para nós mesmos e para nossas crianças? E como desenvolver essas qualidades em nós mesmos?

Acho que seria bom começar discutir essa questão identificando alguns padrões que encontrei em minha pesquisa científica: três coisas simples que os mestres tendem a fazer:

Bons professores são excepcionalmente bons em uma conversa curta

A maioria dos grandes professores não começam a aula ensinando. Eles começam se conectando. Eles querem conversar, envolver, perceber como você está, quem você é, e o que te motiva.

Alguns anos atrás, o Dr. Mark Lepper de Stanford organizou um extenso estudo baseado em vídeos sobre os hábitos dos professores de matemática mais bem sucedidos, e descobriu um fato curioso: os melhores professores começavam suas aulas com uma conversa descompromissada. Eles falavam sobre o clima, sobre a escola, ou a família – qualquer coisa que não fosse matemática.

Isso parece sem sentido, até considerar o papel que uma simples conversa tem ao construir uma relação de confiança. Nós não confiamos naturalmente nas pessoas, e essas pequenas conversas abrem portas para a confiança e para o aprendizado.

Bons professores fazem muitas perguntas

Nós instintivamente pensamos que grandes professores são repositórios de sabedoria, que fazem palestras brilhantes demonstrando erudição e cultura. Isso é uma idéia completamente falsa. De Sócrates até John Wooden, notamos que bons professores são aqueles que fazem as perguntas certas, não aqueles que dão as respostas.

A pesquisa de Lepper mostra que os professores bem sucedidos passam 80 a 90% do seu tempo fazendo perguntas. Eles não buscam ditar a verdade, mas eles estão fazendo algo ainda mais importante: criando uma plataforma onde o aprendiz se empenha para buscar as respostas certas.

Geno Auriemma, treinador do time feminino de basquete da Universidade de Connecticut, é particularmente bom nisso. Lemos isso num recente relato:

Aqui está uma frase que Auriemma pronuncia o tempo todo para seus jogadores. “Figure it out!” (que tem o sentido de descubra! Se vira! Perceba!)

Quando ele diz uma vez, ele repete uma centena de vezes. E, cada vez que um dos jogadores olha para ele com cara de interrogação, perguntando: “O que eu faço agora?” Ele pára o treino.

“Figure it out! [descubra]” o treinador insiste. “O que você acha que deve fazer? Por que você precisa que eu te fale a todo o tempo o que você deve fazer?”

Bons professores têm um bom senso de humor

Sim, existem professores ultra-sérios por aí que raramente mostram um sorriso (estou de olho em vocês, professores de música), mas a grande maioria dos grandes professores usam o senso de humor da mesma maneira que poderiam usar um canivete suíço: uma ferramenta social multi-uso. Humor pode relaxar a tensão, criar um terreno comum e construir inter-relações. Em outras palavras, ser legal não é apenas ser legal – é também ser inteligente.

O que no final, nos traz à próxima pergunta: quais outras habilidades devemos adicionar a esta lista? Quais habilidades são fundamentais aos grandes professores, e como eles te fazem uma pessoa melhor? Estou ansioso por saber o que você pensa a respeito.

 

 

Este artigo não foi escrito por mim, mas por Daniel Coyle, autor do livro “The Talent Code”, com tradução para o português “O código do Talento” e pode ser lido no original no link abaixo:

http://thetalentcode.com/2014/04/15/3-simple-things-great-teachers-do/

Australia Tour 2017

Em Junho de 2017 o Quinta Essentia viajou até o outro lado do mundo para se apresentar na Austrália. Foram várias apresentações em diferentes cidades, destacando o convite do Woodend Winter Arts Festival ao quarteto, sem o qual não seria possível ter realizado a turnê. O grupo se apresentou também em outros eventos importantes, organizados pela Victorian Recorder Guild e pelo Conservatório de Música da Universidade de Sydney, oferecendo masterclasses e palestras para ambos.

Preparação da Australia Tour

Quinta Essentia em Melbourne
Quinta Essentia em Melbourne

A idéia dessa turnê para a Austrália é antiga. O Quinta Essentia recebeu o primeiro convite para se apresentar na terra dos cangurus em 2009, logo após a primeira turnê internacional na Europa. Naquela época, o grupo não tinha condições de realizar tal viagem, pois os custos das passagens eram altíssimos e o cachê oferecido não era suficiente para tal. Tivemos que recusar o convite, e aguardar uma melhor oportunidade.

O segundo convite veio do Festival de Woodend, em 2013, mas devido à agenda do grupo na gravação do disco Falando Brasileiro, não pudemos aceitar. Esse convite teve que esperar mais alguns anos para que pudesse ser efetivado.

Abertura do festival
Abertura do festival

E em 2016, recebemos um novo convite do Woodend Winter Arts Festival referente à edição de 2017, com antecedência suficiente para planejarmos uma maravilhosa turnê. A partir deste convite, entramos em contato com todas as pessoas que já demonstraram interesse em assistir o grupo naquela região do planeta, e pudemos confirmar eventos na Victorian Recorder Guild – a sociedade de flauta doce do estado de Victória no sul da Austrália – e também no Sydney Conservatorium of Music, que é vinculado à University of Sydney. E além de concertos, os membros do grupo foram solicitados a oferecer masterclasses e palestras.

O Festival nos ofereceu dois concertos na programação oficial, além de um concerto na abertura do festival. Ficamos honrados com o convite de tocar na abertura, até descobrirmos que o concerto de abertura seria ao ar livre, com possibilidade de vento nos instrumentos, e por causa disso, tivemos que recusar a honra de abrir o festival com música brasileira para flautas doces, afinal, o nosso instrumento, a flauta doce, não emite som se houver vento externo na janela do instrumento.

Em contra-partida, o festival nos pediu que nos apresentássemos em escolas da região, seriam 3 concertos em diferentes escolas.

O plano

A partir da confirmação dos eventos, o próximo passo foi o plano da viagem em si, para atender todos os compromissos:

Divulgação em Woodend

3/6 – Concerto/masterclass na sociedade de flauta doce de Victoria
4/6 – Viagem de Melbourne para Sydney (trajeto: 900km)
5/6 – Masterclass no Conservatório de Sydney
6/6 – Concerto no Conservatório de Sydney
7/6 – Viagem de Sydney para Woodend (trajeto: 850Km)
8/6 – Concertos em escolas
9/6 – Concertos em escolas
10/6 – Concerto no Woodend Winter Arts Festival
11/6 – Concerto no Woodend Winter Arts Festival

Com esse mapa em vista, teríamos que providenciar as passagens aéreas, todos os traslados a todos locais de concertos nas diferentes cidades que iríamos nos apresentar, providenciar hospedagens onde fosse o caso, e outros detalhes.

A passagem aérea foi a primeira providência. Além de ser o ponto mais caro da viagem, dependendo das conexões, das datas, e da franquia de bagagens (afinal levamos muitos instrumentos em uma turnê como essa) poderia inviabilizar toda a turnê. Encontramos uma variação de preços de mais de 40% nas passagens, e acabamos escolhendo um vôo pela Qatar Airways, de SP para Melbourne com parada em Doha, no Qatar.

Próximo passo seria a longa viagem para Sydney, pesquisamos vôos mas as companhias aéreas na Austrália não oferecem franquia de bagagem grátis. Como estávamos viajando com 5 pessoas e muitas malas, preferimos a viagem de carro do que pagar excesso de bagagem e mais 5 passagens aéreas. O aluguel do carro já estava quase certo, foi quando o festival entrou em contato dizendo que um patrocinador ofereceu o carro para nós gratuitamente, faltando apenas alguns dias para viajarmos. Excelente notícia!

A hospedagem foi quase toda acertada com os organizadores de cada um dos eventos, exceto pelo Conservatório de Sydney, que nos deixou livre para decidir onde ficaríamos hospedados. E um amigo de infância, que atualmente mora na cidade e sabendo de nossa passagem por lá, nos ofereceu sua casa e hospitalidade.

A viagem

A viagem seria longa, muito longa. Um vôo de 14 horas de SP até Doha, 22 horas de espera na cidade, para somente depois embarcar de Doha para Melbourne em um vôo de 11 horas. Total da viagem: 47 horas. Diferença de fuso-horário: 13 horas (enquanto em SP é meio dia, em Melbourne é 1h da manhã do dia seguinte).

Apesar do fato de ter que chegar no aeroporto às 3h da manhã para o check-in, a viagem foi tranquila. Chegamos em Doha na noite do mesmo dia, passamos por vários controles de raio-x e alfândega, e partimos para o hotel. Fica a dica: a Qatar Airways oferece uma hospedagem em trânsito para conexões maiores que 8 horas em Doha. Dá para descansar e/ou sair para conhecer a cidade. Gostei muito da experiência, exceto da temperatura da cidade: máxima de 47º e mínima de 37º naquele dia… Abaixo algumas fotos (clique para ver todas)

20170531 - Doha

Depois de uma boa noite de descanso e um passeio nas arábias, seguimos rumo a Melbourne. Mais um vôo de 11 horas, com pernas apertadas entre os bancos.

A chegada em Melbourne foi calorosa, fomos muito bem recebidos pela produção da Victorian Recorder Guild. Chegamos à noite, e teríamos o dia seguinte para acostumar com o fuso-horário, não é simples adaptar o corpo a 13 horas de diferença, a sensação de sono e de fome ficam malucas.

Victorian Recorder Guild

Concerto Victorian Recorder Guild

O dia foi puxado. Fizemos uma oficina com os membros da comunidade, onde participaram mais de 30 flautistas, divididos com os instrumentos soprano, contralto, tenor, baixo, grande-baixo e contra-baixo. Depois da oficina, teve aula para crianças, teve palestra onde contamos a história do grupo aos participantes, e ao final, um concerto com o mais novo repertório do Quinta Essentia: CABOCLO, com obras de compositores eruditos consagrados.

Fizemos muitas novas amizades, e foi muito gratificante conhecer pessoas que vieram de cidades distantes só para ter a oportunidade de assistir nosso concerto e participar das oficinas. Dentre essas, uma professora de flauta doce no Método Suzuki da região nos escreveu para que ela e sua filha pudessem ter aulas com a Renata, e além de participarem do evento, depois foram nos visitar durante o festival em Woodend. Foi bárbaro.

 

Sydney Conservatory

Concerto em Sydney
Concerto em Sydney

Já no dia seguinte, encaramos 11 horas de estrada de Melbourne para Sydney. Estradas boas e sem pedágio, porém, uma coisa que não é simples de acostumar foi o carro com o motorista do lado direito, e o trânsito do lado esquerdo (mão inglesa).

Não tivemos muito tempo para descanso, chegamos tarde da noite, dormimos para já no dia seguinte trabalhar o dia todo, em aulas e palestras no conservatório.

Chegando lá, todos estavam nos esperando logo na entrada. Um grande entusiasta já aposentado e estudante do conservatório, Peter, e mais três meninas eram os membros do quarteto de flautas do conservatório. A manhã se passou em uma longa aula/conversa sobre música, performance, produção musical e carreira artística, onde contamos a história do grupo, falamos de perspectivas para o futuro, em vias de orientar as meninas do quarteto, todas com cerca de 20 anos, em quais possibilidades de trabalho elas poderiam encontrar ao terminar a graduação de música daqui a 2 anos.

O período da tarde, trabalhamos de fato música, onde o quarteto tocou duas peças: O Lamento de Clorinda de Monteverdi, e O Cavalo de 5 Patas, de Chiel Meijering, uma peça audaciosa e virtuosística. No Monteverdi, eles contaram com a presença de uma cantora soprano, que fez a voz superior do madrigal escrito a 5 vozes. No masterclass, também contamos com a presença de diversos flautistas e outros músicos, que assistiram e fizeram muitas perguntas.

No dia seguinte, fizemos um belo concerto em uma das salas de concerto do conservatório.

Woodend Festival

Na sequência, nos dirigimos diretamente para Woodend, novamente uma viagem de 11 horas na estrada, chegando à noite.

Essa cidade, localizada no meio das montanhas ao norte de Melbourne, é muito pitoresca e calma. Nas estradas, você pode se deparar com uma família de cangurus, e com sorte, pode ver dois deles “lutando boxe” em disputa de território; pudemos presenciar essa cena no segundo dia na cidade, mas sem fotos pois os animais estavam longe de nós.

Nos apresentamos em três escolas, sendo uma escola pública, uma escola particular com uma metodologia alternativa, e uma escola particular tradicional.

Nessas escolas, pudemos saber mais de como a educação é feita naquele lugar, quais assuntos são importantes, ver “in loco” como cada escola se organiza e como os alunos se comportam nesse tipo de ambiente e em eventos.

Foi fantástico ver adolescentes curtindo a nossa música brasileira com flautas doces, ver a curiosidade deles a respeito das flautas modernas e as baixos quadradas, e a diferença gritante entre as escolas públicas de lá e as daqui, seja na questão das dependências da escola, seja na educação dos alunos em comparação com a falta dela muito comum aqui em nossa terra.

Depois dessas apresentações, fomos à abertura do festival.

A noite era fria, cerca de 5º, com vento e garoa fina, e acontecia o concerto de abertura com o Australian Guitar Trio. Teve queima de fogos de artifício, e uma feira de comidas típicas, além de uma apresentação com gaitas de fole.

Ainda teríamos dois concertos nos dias seguintes. Casa cheia nos dois dias, e muitos aplausos no final, foi quando apresentamos como bis, o Mourão de César Guerra-Peixe.

Concerto em Woodend
Concerto em Woodend

Faltou contar sobre nossa fantástica hospedagem, em Duneira, um museu histórico nos arredores da cidade que tem um jardim belíssimo. Nos momentos de descanso, pudemos ficar na sala de música, onde tocamos piano, cantamos e ensaiamos para os concertos. De vez em quando, ouvíamos barulhos pela casa, como se tivessem mais pessoas no local, ou arrastando móveis, mas não demos atenção. No último dia, quando empacotávamos as malas e instrumentos para partir, em uma conversa com a diretora do festival ela nos contou que havia atividade paranormal na casa, e histórias a respeito dos últimos donos do local. Um deles teria sido agente da KGB, morrendo envenenado dentro da casa. Quando chegamos em casa depois da viagem, descobrimos que existem até passeios turísticos para este local para que as pessoas presenciem assombrações reais.

Abaixo tem algumas fotos do jardim (clique para ver todas):

20170611 - Duneira

Agradecimentos

A experiência foi fantástica, e só temos a agradecer a todos que tornaram essa turnê possível. Toda a equipe do festival de Woodend, toda a Sociedade de Flauta Doce de Victoria, a direção do Conservatório de Sydney, os patrocinadores do festival, aos amigos “Café” e Rosie que nos hospedaram em Sydney, e um agradecimento especialíssimo ao nosso Roadie e grande amigo, André Isaia, que nos acompanhou em toda a viagem, ajudando na produção de todos os concertos, venda de CDs, tocando piano nos momentos de lazer, e é claro, aproveitando da ‘boca livre’ quando éramos convidados para jantar com os organizadores. Em suma, celebrando a nossa amizade da maneira que mais gostamos de fazer: com muita música, viajando e curtindo os melhores momentos de trabalho e lazer juntos.

 

Resenha: A Arte da Fuga – Revoice Magazine

Recebemos mais uma resenha de nosso novo disco, A Arte da Fuga, desta vez pela revista inglesa Revoice Magazine. Traduzimos em primeira mão ao português, mas mantivemos o link para a resenha original em inglês:

“Uma execução distinta e inspiradora”: A Arte da Fuga com Quinta Essentia

Artigo original: https://www.revoicemagazine.com/issue-4/2017/4/25/review-quinta-essentias-art-of-fugue

Nós ficamos encantados em receber o último CD do Quinta Essentia, o quarteto de flautas mais importante do Brasil, para resenha nesta edição da revista. Summer Alp, estudante do último ano da graduação de flauta doce e oboé barroco no Royal College of Music em Londres, escreve esta resenha…

O Quinta Essentia é o principal quarteto de flautas do Brasil. Este é o seu terceiro disco desde que o grupo foi formado, há 10 anos atrás (os discos anteriores são “La Marca” de 2008 e “Falando Brasileiro” de 2013), e esta é a segunda gravação da Arte da Fuga com flautas doces (a primeira foi feita pelo Amsterdam Loeki Stardust Quartet em 1998).

Um consort de flautas está em posição privilegiada para tocar esta obra, que não possui instrumentação definida. Performances e gravações anteriores incluem um grande número de formações instrumentais, no órgão, piano, cravo, grupo de cordas, grupo de metais, e grupo de madeiras, como por exemplo quarteto de saxofones. Num grupo de flautas, cada voz pode se misturar perfeitamente com as outras resultando um som único, de forma que muitas vezes é comparado ao som do órgão, mas também é capaz de destacar cada uma das vozes de forma independente. O Quinta Essentia utiliza essas qualidades lindamente desde a primeira faixa do disco, dando o tom para o resto do disco.

A forma desta obra é excepcionalmente desafiadora: Bach escreve quatorze fugas (a última inacabada) e cinco cânones todos sobre o mesmo tema. Ainda assim, a gravação tem seus contrastes, com um senso de tensão crescente e decrescente com o passar da música, enfatizado pela proximidade dos instrumentos no final. Os músicos usam gestos sofisticados e triviais ao longo das fugas que dão unidade e fluxo a toda a obra.

A Arte da Fuga combina intelectualismo sério com alguns momentos mais relaxados dentro da composição, aos quais em ambos os casos, o Quinta Essentia consegue capturar nesta gravação. Para mim, os contrapontos 4 e 5 estão cheios de melancolia, o contraponto 12 é encantador, o contraponto 2 é bastante alegre, Canon alla Decima tem ar de dança, e o contraponto 9, emocionante. Com o passar da música, cada fuga e cada cânone é caracterizado para criar uma paleta de contrastes gratificantes.

O Quinta Essentia também aproveita a oportunidade de explorar as possibilidades da instrumentação, apresentando alguns movimentos como um órgão portativo (por exemplo no contraponto 9) e outros (como no contraponto 13) com mais nuances e inflexões de música de câmara.

Enquanto os instrumentos de forma geral se misturam muito bem, existem alguns momentos desbalanceados conforme o grupo assume os riscos de tocar em flautas de diferentes tamanhos. Isto se torna perceptível em algumas das relações entre os instrumentos graves e agudos, particularmente em termos de presença, notas sustentadas e articulações. Também existem alguns momentos menos atrativos nas partes extremamente agudas da primeira voz, mas isso não atrapalha na intenção da frase musical.

Em contraste com a gravação do Amsterdam Loeki Stardust Quartet, o Quinta Essentia escolheu tocar o último e inacabado Contraponto 14 “a 3 soggetti” com uma resolução (uma cadência, não uma composição interpolada) ao invés de deixar a obra inacabada. Isso deixa o ouvinte com uma sensação diferente, mas depois de uma performance tão pungente esse fato tem um efeito muito marcante, e eu gostei dessa solução para essa questão controversa. O Quinta Essentia também oferece a integral dos cânones (três mais do que o Loeki Stardust) para completar o disco.

Esta é uma gravação distinta e inspiradora que se destaca em meio a infinidade de gravações da Arte da Fuga.

A Arte da Fuga

O Quinta Essentia recebeu a primeira avaliação do seu mais novo disco com a integral da obra A Arte da Fuga de Bach, que será lançado em Maio mundialmente, pelo selo alemão ARS-Produktion.

Com grande satisfação, traduzimos a resenha abaixo, e deixamos o link original com o texto em inglês:

Bach: The Art of Fugue – Quinta Essentia Quartet

Artigo original em inglês: https://www.hraudio.net/showmusic.php?title=12163&showall=1

Resenha por Adrian Quanjer – 12 de Março de 2017

O disco é especial por muitas razões. A mais óbvia é: 81 minutos de música gravados em um CD quando sabemos que o máximo para esta mídia é 80 minutos. Contudo, a mais importante pertence à escolha da instrumentação.

Mas antes de comentar sobre a instrumentação, talvez seja útil lembrar, embora os estudiosos não concordem, sobre o que é “A Arte da Fuga”, qual a real intenção de Bach com a obra?  É ilustrativo que Bach não escreveu as variações para um instrumento específico. Eles foram escritos na chamada instrumentação aberta. Isso não era incomum naqueles dias, desde que ele forneça pelo menos uma indicação do tipo de instrumentação, como por exemplo ‘para teclado’, dando assim uma escolha entre órgão e cravo. No entanto, no caso de A Arte da Fuga, a questão permanece aberta. De propósito? As opiniões de especialistas variam, como fazem sobre muitas outras coisas sobre a composição final de Bach.

Pertenço àqueles que consideram que os contrapontos de Bach tratam principalmente de técnicas de composição e podem, portanto, ser melhor vistos como um exercício intelectual ou, nas palavras do musicólogo alemão Christoph Wolff: “uma exploração em profundidade das possibilidades contrapontísticas inerentes a um único tema musical”. Em termos simples: material de estudo composicional. Ou (tendo em conta que estes foram o exercício final de sua vida) um legado do que ele (Bach) considerou ser o zênite de suas habilidades de composição, deixando para outros a finalização do seu último contraponto (14, inacabado) mas não menos assinado: B-A-C-H.

Muitos estão acostumados a apresentações com órgão, capaz de cobrir os graves e agudos, o que, de acordo com eminentes tecladistas como Gustav Leonhardt, o cravo é incapaz de fazer. Mas existem outras versões instrumentais. Para quarteto de cordas (Emerson Quartet), ou orquestral (Musica Antigua Köln), este último oferecendo a possibilidade de trazer mais variação na perspectiva sonora. Porque, vamos ser honestos, ouvir um conjunto completo de 14 exercícios de contrapontos não é algo muito simples de ouvir. É mais alimento para a mente do que alimento aos ouvidos. É provavelmente por isso que alguns intérpretes tocam apenas “capita selecta” para não sobrecarregar demasiado o cérebro do ouvinte, ao mesmo tempo em que dão a devida homenagem ao que poderia, de fato, ser considerado a realização final na obra de Bach.

O Quinta Essentia Quarteto, composto por quatro músicos brasileiros, com grande popularidade em seu país, propõe não apenas ser o mais completo possível, baseado em grande parte no manuscrito original (embora usando também a edição revisada de 1751 do C. P. E. Bach), mas também realizando a música com quatro flautas doces. E “por razões de sonoridade” optaram por instrumentos históricos. O problema, contudo, era encontrar (cópias) de instrumentos históricos que pudessem abranger toda a tessitura, desde a nota mais aguda à mais grave. No encarte, tudo isso é explicado; também que, finalmente, um fabricante de instrumentos japonês se ofereceu para fazer um segundo corpo para uma flauta grande-baixo 440 Hz Yamaha moderna, para que pudesse ser tocada em diapasão “histórico” 415 Hz.

O resultado, tal como realizado pelo Quarteto Quinta Essentia, é bastante interessante. Sendo de uma mesma família, os quatro instrumentos escolhidos têm a capacidade de misturar-se perfeitamente uns com os outros, emulando como se fosse um pequeno órgão de câmara. Do ponto de vista artístico, o seu conceito funciona «à la merveille» e, em termos puramente musicais, o veredicto deve ser: “missão cumprida”. No entanto, de tão impecável e atraente tenha sido a sua leitura da obra, eu estou menos entusiasmado com o som gravado.

Devido ao seu timbre individual, gravar um grupo de flautas doces não é de modo algum algo fácil. Para evitar a interferência de freqüência obtendo a melhor fidelidade possível é de primordial importância. Quanto maior a resolução melhor será o resultado. O livreto fornece ampla informação sobre os responsáveis pela gravação (Engenheiro e edição de áudio: José Carlos Pires, com nada menos que 11 assistentes de gravação listados), mas nada é dito sobre o equipamento de gravação nem o formato. Na região superior há uma ressonância excessiva, enquanto que, na extremidade inferior, a sonoridade carece de calor suficiente.

Será que 14 peças de estudo, tocadas uma após a outra em variações, mas cada vez mais difíceis tecnicamente, apelar para o ouvido inexperiente de uma audiência média? Tenho aqui minhas dúvidas. Pode transmitir uma sensação de monotonia na medida em que a complexidade dessas invenções consecutivas escapam a um ouvinte não iniciado. Por isso, sugiro aos iniciantes a não ouvir este disco de uma só vez. Meu conselho: deguste pouco a pouco, até que o cérebro comece a entender e seja capaz de seguir o que, em minha opinião, nunca foi ultrapassado desde que Bach deixou este mundo. Ele serviu, como Bach esperava, como um valioso ponto de partida para as gerações posteriores de compositores até o dia de hoje.

Para um conjunto mais ou menos completo no catálogo de alta resolução há uma variada escolha de instrumentos para esta obra: órgão, cordas, saxofones e agora flautas doces. Preferências pessoais podem desempenhar um papel na escolha, e este disco é uma escolha tão boa como os outros citados. O conceito é interessante e, a julgar pela qualidade da performance e entusiasmo com que Gustavo de Francisco, Renata Pereira, Felipe Araujo e Fernanda de Castro desdobram suas idéias, não apenas os amantes da flauta doce, mas muita gente certamente vai querer ouvir mais sobre esse conjunto inventivo.

Blangy-le-Château,
Normandy, France.

Copyright © 2017 Adrian Quanjer e HRAudio.net

Performance:
Sonics (Multichannel):

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Turnê América – Crítica da NEIU Independent

Em Maio e Junho de 2016, o Quinta Essentia fez uma turnê nos Estados Unidos, que contemplou 8 cidades em 5 estados. Foram 7 concertos, e seus membros ofereceram 8 masterclasses e uma palestra, participando também da Conferência da Suzuki Association of Americas em Minneapolis/MN e do Festival de Música Antiga de Whitewater/WI.

Sobre o concerto na Jewel Box Series promovido pela Northeastern Illinois University, o Quinta Essentia recebeu a seguinte crítica pelo jornal NEIU Independent, traduzida abaixo:

Gravando Bach: Quinta Essentia Jewel Box

Artigo original em inglês: http://neiuindependent.org/5875/arts-life/recording-bach-quinta-essentia-jewel-box/

Jewel-Box-900x600
Foto por Pablo Medina – (esquerda para direita) Renata Pereira, Gustavo de Francisco, Fernanda de Castro e Felipe Araujo

Pablo Medina, Gerente de produção
25 de Maio de 2016

Eu nunca ouvi flauta doce o suficiente em minha vida. O mesmo pode ser dito da maioria das pessoas, mesmo aquelas que estudaram o instrumento no jardim de infância ou em aulas de apreciação musical.

O Quinta Essentia Quarteto do Brasil fez essa verdadeira declaração com o seu excelente concerto em 20 de Maio. Apresentando “A Arte da Fuga” de Johann Sebastian Bach, seus quatro integrantes demonstraram sua habilidade e o estilo barroco inconfundível de Bach – tudo isso na flauta doce.

O grupo, com os membros Gustavo de Francisco, Renata Pereira, Felipe Araújo e Fernanda de Castro, é um dos principais grupos de música de câmara, representando os diversos repertórios europeu e sul americano da flauta doce. O grupo foi formado em 2006, completando 10 anos neste ano.

“Quinta Essentia tem 5 elementos, nós os quatro músicos, e a flauta doce” de Francisco disse.

Usando cerca de 12 flautas de diferentes tamanhos, o grupo apresentou uma interpretação historicamente precisa da obra de Bach, composta no fim de sua vida.

“Nós alternamos entre os 3 grupos de instrumentos quando viajamos” Gustavo de Francisco disse. “Neste concerto, usamos o consort barroco, porém em outros repertórios usamos também o consort renascentista ou o consort moderno”.

Apesar de apenas quatro vozes na obra, o grupo alternou entre instrumentos soprano, contralto, tenor e baixo de diferentes tamanhos.

“Como instrumentistas, nós sempre buscamos ultrapassar os limites técnicos dos instrumentos e de nossas habilidades” disse de Francisco. “Costumamos dizer em português para coisas que gostamos, que ‘comemos a carne mas também temos que roer o osso’, quer dizer que se você faz algo que ama fazer, você vai gostar de tudo o que está relacionado a ela”.

Quando eles tocaram juntos, o som criado era incomparável com tudo o que eu já havia ouvido antes. Era música celestial, e o Quarteto personalizava os anjos tocando nos portais do Céu.

Mesmo com o tema principal sendo tocado um após o outro, cada contraponto parecia novo, como uma brincadeira do compositor que adicionava novas e maravilhosas nuances em um som familiar, cada uma fluindo em diferentes ritmos e ornamentação.

Na segunda parte do programa, o grupo demonstrou a extravagância da obra de Bach com mais 5 contrapontos, com a inversão das vozes e a incorporação de duas fugas tocando ao mesmo tempo. Além disso, os contrapontos 12 e 13 foram tocados em sua forma normal e invertida. Isso tudo foi ainda mais extraordinário considerando que o concerto foi tocado inteiramente de memória (decor), como verdadeiros artistas.

O som etéreo do grupo casou-se perfeitamente com a música, que não tem instrumentação definida por Bach. Deixou uma notável impressão em mim, que despertou meu interesse em descobrir outras músicas que foram escritas para o som doce da flauta doce.

Logo após os aplausos para o concerto convincente do quarteto, seus quatro membros surgiram com um bis surpreendente: uma música pop brasileira com ritmo agitado e suave expressividade. Com toda certeza, o Quinta Essentia quarteto é um grupo que sabe se divertir e sabe quando ultrapassar os próprios limites.

CD A Arte da Fuga – Pré venda exclusiva!

Este ano estamos comemorando 10 anos de trabalho de divulgação da Música de Câmara Brasileira e da Prática Brasileira da flauta doce e para isso decidimos encarar um grande desafio: gravar a integral da ARTE DA FUGA de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

Já fizemos toda a parte de gravação juntamente com a equipe do curso de Produção Fonográfica da FATEC – TATUÍ/SP, e agora contamos com a sua ajuda para finalizar esse grande projeto.

Vendendo antecipadamente os CDs, conseguiremos a verba necessária para finalizar o álbum e poder entregá-lo fisicamente para todos vocês.

Para você que gosta de flauta doce, pra você que gosta de música barroca, ou gosta de música de câmara e principalmente, de J. S. Bach, ou simplesmente para você que admira e acompanha o nosso trabalho, é com você que sabemos que podemos contar e é para vocês que fazemos o nosso trabalho. Com quem compartilhamos a nossa música, os nossos sonhos, e desafios.

Nos ajude nessa grande comemoração e receba com todo carinho o nosso melhor!

Dê uma olhada agora nas recompensas que preparamos para vocês e saiba como você pode nos ajudar! Basta seguir o link:
http://www.kickante.com.br/campanhas/finalizacao-do-cd-arte-da-fuga

Articulação – Podemos falar dentro da flauta?

Existem 3 importantes aspectos na técnica de tocar flauta doce. O mais conhecido – e o mais fácil de desenvolver – é o dedilhado, e dentre todos, é o único visível e aparente a qualquer pessoa que assiste àquele que toca. Outro aspecto, ainda que invisível, é muito presente: a respiração e o controle do ar. Além destes há ainda um terceiro, o qual é simplesmente negligenciado por muitos que dizem tocar flauta doce. Esse importante aspecto técnico, que inclusive nos permite até falar dentro do instrumento, é o movimento da nossa língua, o qual chamamos de Articulação.

Com o movimento da língua conseguimos fazer vários tipos de ataque para cada nota, e também vários tipos de corte, desde um ataque super leve e doce até um ataque explosivo e agressivo. Assim como não cortamos o ar para falar cada palavra em uma conversa, não devemos cortar o ar para cada nota, o movimento do ar (diafragma) e da língua devem ser independentes.

A flauta doce nos possibilita uma infinidade de possibilidades neste aspecto, pois diferente de muitos outros instrumentos de sopro, podemos falar dentro dela, podemos articular qualquer vogal e quase qualquer consoante enquanto tocamos.

Aspectos técnicos da articulação

Cavidade bucalPodemos dizer que a articulação na flauta doce é a consoante que usamos no ataque de cada nota, porém esta definição não é a mais exata ou correta. Eu prefiro dizer que a articulação é a combinação de consoantes usadas em uma frase musical, pois para a música – sendo ela uma linguagem – não importa como falamos cada sílaba, mas sim, como pronunciamos cada frase ou idéia musical, de forma que ela se torne inteligível. Exatamente por esta razão, algumas articulações são peculiares a cada nacionalidade, por causa da língua materna do flautista.

A posição da língua

Devemos posicionar a língua corretamente para poder articular mais facilmente, sem um movimento excessivo da língua pois isso acarretaria em perda de agilidade.

O primeiro exercício é sussurrar “SSSSSSSSSSSSS…T!”. Com o som do “S” a língua logo atrás dos dentes incisivos se posiciona no ponto correto, e com isso preparamos para articular o “T” em seguida. O T deve ter o som claro e preciso, produzido com a ponta da língua.

O formato da boca

Dependendo da vogal pronunciada, mudamos o formato da boca ao falar; isso altera a forma em que o ar entra no instrumento, e também altera a forma que pronunciamos cada consoante ao articular, pois algumas vogais favorecem mais a articulação que outras. Obviamente, não pronunciamos a vogal ao tocar, mas devemos ter a vogal em mente ao tocar pois esta é a forma para obtermos um som mais controlado e bonito.

Na articulação "Te" a língua se posiciona logo atrás dos dentes incisivos
Na articulação “Te” a língua se posiciona logo atrás dos dentes incisivos
Na articulação "Tu" a língua encosta no palato duro, mais atrás comparado ao "Te"
Na articulação “Tu” a língua encosta no palato duro, mais atrás comparado ao “Te”

De maneira geral, temos a utilização das vogais U, E e I citada em todos os métodos de flauta doce em quase todos os idiomas, sendo que a vogal U é a mais utilizada nos livros. A razão disso é histórica, pois os primeiros métodos para instrumentos de sopro foram feitos na França, onde a vogal U é a mais apropriada à articulação para nativos da língua francesa. Em português, quando usamos a vogal U a língua fica muito longe dos dentes, e a vogal E é mais apropriada.

Como ideal, tanto para a agilidade quanto para o controle do ar, é que a língua se posicione o mais próximo possível dos dentes incisivos, e que a boca tenha o menor volume possível próximo aos lábios, isto é, formando um “bico” com os lábios. Para este ideal, eu costumo dizer aos meus alunos para fazer “boca de U e som de I”, experimentem fazer isso. Basta dizer “IIIII” e fazer com os lábios como se fosse “UUUUU” (é como o U francês, com biquinho). Esta posição da boca reduz o tamanho da boca e aproxima a língua dos dentes, facilitando a articulação.

Vamos comentar a algumas articulações possíveis:

Articulação simples

Dizemos articulação simples para todas articulações que não são combinadas em grupos de 2 ou mais articulações para obter um resultado específico. Geralmente usamos as consoantes “T”, “D” e “R”, mas outras consoantes também podem ser usadas ainda caracterizando articulações simples, porém, é muito menos usual.

“T”

A cada nota que tocamos na flauta, devemos articular, e esta é a articulação mais usual. Muitos professores ensinam logo na primeira aula que devemos dizer “tu” ao tocar cada nota, e essa é uma recomendação muito importante. Alguns professores também ensinam “te” ao invés de “tu”.

Como eu falei antes, sobre o formato da boca, a vogal “u” deixa nossa boca arredondada e não focaliza o ar da melhor forma para obter o melhor som da flauta. Por isso, prefiro falar para fazer “boca de U e som de I”, como o som da vogal “u” em francês. Resumindo: dizemos “ti” porém com a boca de “u”.

Importante evitar o som chiado na articulação, queremos “ti” e não “tchi”.

Dessa forma, a língua ao articular “ti” se posiciona mais à frente do que ao articular “tu”, resultando uma articulação muito mais precisa e controlável.

“D”

Essa articulação é muito parecida com o “t”, porém o resultado é uma articulação mais doce, mais leve.

Quando queremos uma frase musical mais “legato”, articulamos com “D”. Ao articular menos legato, usamos “T”. Na música barroca, podemos definir uma regra: notas em grau conjunto ou escalas, articulamos com “D” e notas em salto ou notas repetidas, usamos “T”.

Da mesma forma que antes, usamos a vogal I com boca de U.

“R”

A consoante “R” também pode ser usada, com um resultado intermediário entre o “T” e o “D”. Me refiro ao “R” como na palavra “garantia”, não como na palavra “carro” ou “computador”. Geralmente a consoante “R” vem acompanhada de combinações com outras articulações, definindo alguns padrões.

Ainda há que se ater ao sotaque, pois em algumas regiões o R arrastado (como no interior do Paraná ou no interior de SP) ou muito pronunciado como no Rio Grande do Sul. Essas diferenças de sotaque certamente aparecem ao tocar.

Outras

Como disse, ainda existem outras consoantes que podem ser usadas ainda como articulação simples. São elas: “K” – correspondente ao “T” com o fundo ou meio da língua ao invés da ponta -, o “G” – corresponde ao “D” – e o “L” que em nosso idioma praticamente não soa articulado.

Essas consoantes e algumas outras podem ser agrupadas, para formar o que chamamos de:

Articulação dupla

Chamamos de articulação dupla quando duas consoantes diferentes são agrupadas para obter um propósito técnico ou artístico, como por exemplo, articular notas muito rápidas ou fazer contrastes entre notas importantes e notas de passagem.

“T-R” e “T-D”

Estas duas combinações possíveis geralmente são classificadas como articulação simples, pois ambas as consoantes usam a mesma parte da língua – no caso a ponta – para articular.

O resultado enfatiza a primeira nota da sequência de 2 notas, ou de uma sequência mais longa de duas em duas notas. Este é o princípio do que chamamos de inegal ou inegalité, muito usado na música barroca francesa, mas também encontrado em outros repertórios.

“T-K”

Esta é a típica articulação dupla, conhecida por quase todos instrumentistas de sopro, e o seu maior objetivo é possibilitar tocar mais rápido aquilo que não se consegue tocar com articulação simples.

A razão é simples: é muito mais fácil falar “ti ki ti ki ti ki” que “ti ti ti ti ti ti”, pois a língua alterna um movimento na ponta (T) com um movimento no meio ou fundo (K), como se fosse uma gangorra.

Ainda assim, ao usar a vogal “I” ao invés de “U” é possível levar toda a articulação bem para a frente da boca, resultando numa articulação super delicada e rápida.

“D-G”

Esta é a correspondente da anterior, porém mais suave. A técnica é exatamente a mesma.

Outras combinações

Existem outras possíveis combinações, como a articulação tripla (T-K-T) para fazer tercinas ou compassos compostos de forma mais rápida.

Há também o que mencionar uma outra combinação, ensinada pelo italiano Silvestro Ganassi como te-re-le e conhecida nos países de língua inglesa e alemã como di-dl, que permite uma articulação ainda mais rápida do que a articulação dupla, onde a língua faz movimentos laterais e não apenas de ponta e garganta.

Como sei onde usar cada articulação?

Sempre insisto com meus alunos que a música é uma linguagem, e por isso, não basta tocar apenas as notas escritas assim como não basta soletrar uma poesia; é necessário se apropriar do texto musical e cantá-lo usando seu instrumento, assim como já dizia Silvestro Ganassi no séc. XVI, que todo instrumento musical deve imitar o canto, e essa infinidade de articulações faz da flauta doce um instrumento muito próximo do canto como Ganassi nos propusera. Para tocar apenas notas certas nos tempos certos com dinâmicas certas, qualquer computador faz melhor que um ser humano, e linguagem e arte não são construídas apenas da perfeição técnica, mas sim, da fantasia do espírito humano.

Mas se a música é uma linguagem, temos que tocar de forma fluente assim como falamos em prosa, ou recitamos em verso. Devemos ter a fluência da articulação ao tocar, com a escolha correta da articulação e a “prosódia” musical para enfatizar as notas importantes fazendo contraste com as notas menos importantes.

Obviamente, não podemos escolher as articulações ao bel prazer sem levar em consideração aspectos estilísticos de cada época, país ou compositor, pois neste caso estaríamos “tocando” uma linguagem ininteligível ao público, ou alterando a essência da mensagem do compositor.

Como regra geral, podemos dizer que devemos usar articulações mais suaves (legato) em notas em grau conjunto, isto é, em notas em escala diatônica ascendente ou descendente, e articulações mais pronunciadas (non legato) em notas repetidas ou saltos. Obviamente, toda regra possui excessões, e também varia de acordo com o estilo musical tocado.

A melhor forma de aprender onde e quando usar cada articulação é pelo bom exemplo, assistindo concertos, vídeos e fazendo aulas com bons professores, sempre procurando imitar o som, da mesma maneira que aprendemos a falar nossa língua materna.

Entrevista com Karel van Steenhoven

Em minha última viagem para a Alemanha tive o prazer de conhecer um grande flautista, o qual foi membro fundador do Amsterdam Loeki Stardust Quartet, um grupo de flautas doces holandês com 30 anos de história. Este flautista me concedeu uma entrevista falando um pouco de sua experiência profissional, seus últimos trabalhos desenvolvendo aprimoramentos em algumas flautas modernas, e também, algumas curiosidades dos bastidores do seu grupo.

Transcrevo abaixo a integral da entrevista, já traduzida para o português. Quem quiser ouvir o áudio original, basta acessar este link.

Entrevista com Karel van Steenhoven

por Gustavo de Francisco

 

Arte e cultura são as expressões delicadas e vulneráveis de pessoas que constantemente dão amor, liberdade, respeito e tolerância na mudança das formas e estruturas que apresentam sempre nova vida e formam uma ponte entre a tradição e a renovação, entre a vida e a morte, jovens e velhos, homens e natureza, ideal e realidade. Isso deve ser assim!” K. V. S.

[GUSTAVO] Karel, muito obrigado pela oportunidade desta entrevista, pois para mim é uma grande honra.

[KAREL] Muito obrigado por você estar aqui!

Mas quem é Karel van Steenhoven?

Karel_completaPrimeiramente, gostaria que você contasse um pouco sobre você e a sua carreira, para que os nossos leitores do blog FlautaDoceBR conheçam um pouco mais sobre os seus trabalhos atuais e também sobre a sua experiência artística

Neste momento, eu sou conhecido principalmente pelo meu trabalho com o grupo Amsterdam Loeki Stardust Quartet, do qual participei por 30 anos fazendo concertos pelo mundo afora, fazendo muitas gravações (20 CDs), ganhamos alguns prêmios, e esta é a razão pela qual sou conhecido como flautista. Além disso, faz 17 anos que sou professor de flauta doce e música contemporânea na Universidade de Karlsruhe na Alemanha.

Depois de formado pelo Conservatório de Música de Amsterdam, eu também estudei Composição, com o famoso compositor holandês Tristan Keuris que morreu recentemente… mas ele continua famoso…

Então, o meu principal interesse em música tem sido a minha própria música.

Eu comecei a tocar flauta doce quando tinha 4 anos de idade, mas de fato, eu comecei a tocar em uma clarineta verde, de plástico!

Uau!

“Por que você não experimenta tocar flauta transversal?”, mas eu gostava mesmo era da flauta doce.

É, eu adorava esta clarineta, ela tinha chaves coloridas, nela eu tocava minhas próprias músicas e também as músicas que eu sabia cantar, então eu tocava muito naquele instrumento. Mas em algum momento ela quebrou, pois caiu no chão, daí eu fiquei chorando, e minha mãe disse: “Bem, eu devo ter um outro instrumento em algum lugar aqui em casa!”

[Neste instante ele saiu para buscar algo em uma estante ao meu lado..]

.. E ela me deu isto aqui! Esta foi minha primeira flauta doce, e ela tem muita história para contar, aqui você pode ver a marca do dente do meu primeiro cachorro, pois meu cachorro também tentou tocar flauta doce, mas ele não conseguiu evoluir muito pois ele mordia o instrumento… Mas o instrumento sobreviveu, e continua tocando!

[ele tocou algumas notas…]

1a flauta do KarelDepois que minha clarineta quebrou eu comecei a tocar nesta flauta, e é claro, queria tocar as mesmas músicas agora na flauta, mas isso não funcionava, pois naquela época eu não conseguia tocar o dó grave… Então eu chorei muito, “Por que eu não consigo tocar essa nota!”, então eu pratiquei muito, até conseguir tocar o dó grave, e então eu fiquei feliz novamente.

Desde aquela época eu toco flauta doce, e muitas pessoas tentaram me convencer a tocar outros instrumentos. Meu pai, vendo eu tocando tanto na minha flauta doce, me disse: “Por que você não experimenta tocar flauta transversal?”, mas eu gostava mesmo era da flauta doce. Então, passei a fazer aulas, e meu primeiro professor de música era violonista e também professor de bandolim, e dizia “Bem, eu também posso ensinar flauta doce”…

É, muitas pessoas dizem isso… Inclusive escrevemos um artigo no blog, onde entre outras coisas, dizemos para que professores não procurem ensinar quando não são capacitados.

É, mas naquela época, não existiam bons flautistas que ensinassem flauta doce, isso foi na década de 1960, simplesmente não existia quem tocasse flauta doce. Frans Bruggen estava começando a dar aulas, ele já tinha alguns estudantes mas estes estudantes ainda não lecionavam, então não haviam muitos flautistas.

Muitas pessoas no Brasil passam pela mesma situação, e muitos nos perguntam: O que eu posso fazer, pois em minha cidade não existem professores de flauta doce?

Então, o meu conselho a estas pessoas – eu fui bem sucedido seguindo este pensamento – então aconselho o mesmo às pessoas: procurem um bom professor de música, mas que seja um excelente músico, pois esta pessoa vai lhe ensinar os princípios de como fazer música e arte, mas a técnica específica da flauta doce você deverá buscar sozinho.

Isso aconteceu comigo, este professor que era violonista e bandolinista, era também compositor, e era um bom músico, e por isso me ensinou a linguagem musical e como fazer música. Me orientou o quê e como fazer, me incentivou a tocar minhas próprias músicas, ele me ensinou os primeiros passos em composição. E depois deste professor, já na escola de música, tive outro professor que era violinista, e da mesma forma não era flautista, mas era um excelente violinista, então ele me ensinou tudo o que ele sabia sobre música, mas eu tinha que transportar aquele conhecimento para a flauta doce.

Tenho algo a falar deste professor: ele tinha uma flauta doce e ele conseguia tocar uma nota apenas. E eu estava tocando meio de qualquer jeito, e ele pegou a sua flauta doce e me disse: “Escute Karel, é assim que a flauta deve soar” e em seguida ele tocou a única nota que ele sabia tocar, mas foi um som tão bonito, e eu fiquei realmente impressionado por aquele som, e eu disse para mim mesmo, é assim que eu quero tocar. Mas isso era a única nota que ele conseguia tocar na flauta doce, e todo o resto ele simplesmente tocava no violino. Então ele me ensinou tudo o que eu precisava saber para poder entrar na universidade de música, isto é, ele me ensinou muitas coisas com um bom nível, o suficiente para eu poder entrar no Conservatório de Música de Amsterdam.

Embora ele tocasse apenas uma nota na flauta doce, ele era um excelente músico, e é por isso que eu acredito que esta é uma boa dica para quem não tem como ter aulas com bons flautistas: é melhor ter aulas com um bom músico para saber O QUE deve ser feito e procurar COMO fazer na flauta doce por si mesmo, do que ter aulas com um flautista que não é bom músico. Falo isso por que fazer música é muito mais importante do que saber técnicas básicas.

música é uma linguagem musical que se desenvolve através de ideais sonoros

Eu costumo dizer às pessoas que geralmente estão apenas interessadas em dedilhados e nada mais, porém o dedilhado é a parte mais fácil de todas: Há muito mais o que aprender além de dedilhados, e estes podem mudar dependendo das intenções musicais ou dos instrumentos que estão tocando junto.

Exatamente, é muito mais importante conhecer estilos, expectativas sobre o desenvolvimento do som, como usar o silêncio em música, como construir frases musicais, inclusive os violinistas falam sobre respirações em música, então música é uma linguagem musical que se desenvolve através de ideais sonoros. Você pode traduzir esses ideais para cada um dos instrumentos. O ideal mais importante, para a flauta doce, que aprendemos através do tratado de Silvestro Ganassi [1492 – 1550], “Se você quer realmente tocar flauta doce bem, aprenda a cantar”, se você consegue cantar bem, vai conseguir tocar flauta doce bem; tente imitar os cantores.

Isto é sempre uma parte muito importante do “fazer música”, tente imitar os outros. Se você consegue imitar um bom violinista, ou um bom cellista usando a flauta doce, é muito melhor do que tentar imitar um flautista que não toca bem. Mas por quê isso? Talvez este flautista tenha uma boa técnica, mas ele não tem som bonito, não conhece as diferenças de estilo, ou a sua estética musical não é boa o suficiente. Então é melhor procurar um bom violinista e tentar imitar o estilo, a afinação, e o desenvolvimento do som em geral, a sua linguagem musical.

Este é um excelente conselho.

Sobre o desenvolvimento das flautas modernas

Tenho uma outra questão para você. Gostaria de saber mais sobre o desenvolvimento e melhorias de novos instrumentos da família da flauta doce, inclusive de algumas muito especiais que eu pude ver e experimentar em seu estúdio. Gostaria então que você explicasse sobre o seu trabalho mais recente em conjunto com a Mollenhauer e os novos avanços com as flautas modernas.

Este é um assunto muito interessante, pois tem muito a ver com o que conversamos a respeito da imitação de outros instrumentos. Uma das coisas que eu sempre senti falta, quando ainda criança, também como estudante e hoje como músico profissional, é da conexão direta da flauta doce com os outros instrumentos da família das madeiras. A flauta doce é um instrumento ao qual, durante toda a história da música, foi construído pelos melhores luthiers e fabricantes de instrumentos. Se você pesquisar, durante a Renascença, verá que os mesmos luthiers que construíram flautas transversais, cornetos e outros instrumentos também construíam flautas doces, pois ela era o instrumento mais sofisticado daquela época. Se pesquisar no Período Barroco, os luthiers de flautas doces, flautas transversais e oboés eram em sua maioria, as mesmas pessoas, então como eles construíam os três instrumentos, a flauta doce era construída com a mesmo capricho e tecnologia que a flauta transversal ou oboé [ver fotos acima].

Flautas KarelIsso segue na história. Se comparar os oboés do início do Romantismo, os mesmos luthiers também construíam flageolets e flautas doces daquele período. Mas hoje em dia, desde o grande movimento da música antiga no último século, temos uma falta em relação ao nosso instrumento, os luhiers de flauta doce passaram a ignorar o desenvolvimento de chaves, a afinação, e o desenvolvimento da estética sonora do nosso tempo. Eles simplesmente se separaram do resto do mundo, em uma espécie de “ilha da música antiga”, onde eles trabalham com ferramentas antigas, com sistemas de afinação antigos, com referências de afinação antigas, então, como músico e artista, quando tocamos apenas naquele tipo de instrumento… – é claro, este é um mundo maravilhoso! Mas como você pôde ver, tenho aqui mais de 110 instrumentos, e eu amo todos eles, eles possuem tantas variações e história – mas, ainda, o que eu sinto falta, é que tenhamos uma flauta doce padronizada à estética atual, e que podemos dizer: “Eu sou músico, toco flauta doce, e uso um instrumento que possui a mesma construção e tecnologia que um oboé moderno ou uma clarineta moderna”. Este ainda não é o nosso caso!

Então isso é algo que eu quero mudar, e este é um dos meus últimos projetos na minha carreira musical, e eu quero estimular isso, quero que meus alunos continuem este trabalho estimulando este desenvolvimento, levando a flauta doce a um novo patamar.

Karel na fábrica da MollenhauerEu comecei com este maravilhoso instrumento que foi desenvolvido por Marteen Helder no último século, ele ganhou um prêmio por este instrumento, ele estava desenvolvendo no ateliê da Mollenhauer, mas ninguém deu muita importância a isso, pois o instrumento era muito caro, não era um instrumento tão bom assim no início, mas o modelo e a ideia por trás realmente me atraiu, e as possibilidades deste instrumento realmente me interessaram, pois este é um instrumento que realmente pode se transformar num instrumento padrão moderno, se realmente nos dedicarmos a ele.

Eu gostaria de acrescentar algo, eu conheci este instrumento em 2010, e pude adquiri-lo em 2011, fiquei maravilhado com este instrumento e a infinidade de recursos que ele possibilita, e desde então, usamos este instrumento no Quinta Essentia. O som da flauta Helder mistura muito bem com o som de outras flautas e instrumentos modernos, como por exemplo as flautas quadradas Paetzolds e outros.

Porém, mais importante do que se misturar com outras flautas doces modernas, é que a qualidade sonora, o sistema de afinação e a tessitura se encaixem com outros instrumentos modernos da família das madeiras.

É muito lógico que quando usamos um instrumento barroco, ele te possibilita uma outra estética, uma outra estética de som e de afinação, e inclusive o formato e aparência externa possui um outro princípio estético. A música de nossa época segue claramente outra estética. E se você usa uma flauta doce barroca para tocar uma música composta, por exemplo, após Schoenberg, ela simplesmente não casa. Se você vai com suas flautas barrocas para tocar para outros dançarem, vão dizer que estes instrumentos não são bons. Na estética de cada período, tudo faz parte de um mesmo ambiente, e é por isso que eu quero desenvolver este instrumento moderno.

Então eu fui até a Mollenhauer, e disse: “Vamos transformar este instrumento em um instrumento padrão de altíssimo nível, de forma que ele realmente valha o dinheiro investido”, isso logo que comecei a trabalhar com eles. Depositei todo o meu conhecimento como artista, como flautista e como compositor neste instrumento, e neste momento, posso dizer que a flauta Helder vale o investimento, e ela é a base para outros desenvolvimentos futuros.

Isso não é o que os luthiers gostam de ouvir, incluindo Adriana Breukink sobre a sua flauta Eagle, posso dizer que neste momento a flauta Eagle é um instrumento muito bom, com muitas possibilidades, vale o investimento, mas ainda não oferece tudo o que eu gostaria, mas é a base para um desenvolvimento futuro, e como flautista, acredito que o instrumento ideal seria algum tipo de fusão entre a qualidade sonora e as possibilidades da flauta Eagle contralto, com o sistema de chaves e registros da 3.a oitava da flauta Helder contralto. Se estas duas coisas pudessem ser combinadas, este seria o instrumento ideal.

o papel retórico da flauta doce no Período Barroco era “a voz de Deus”

Você havia me dito que também trabalhou junto com a Adriana Breukink em novos desenvolvimentos na flauta Eagle, você poderia nos contar sobre as suas contribuições na flauta Eagle?

Karel com a flauta EagleSobre o desenvolvimento da Eagle, é difícil explicar como as coisas realmente funcionam. Adri me visita frequentemente, eu falo com ela sobre os meus concertos que faço usando a flauta Eagle, eu comento com ela sobre o que penso a respeito da posição dos furos, sobre os recursos que um flautista moderno realmente precisa e que o instrumento precisa oferecer, sobre as chaves e se elas estão funcionando bem ou não, e ela, por sua vez, tenta colocar todos estes meus ideais no instrumento.

É em resumo um processo de motivação recíproca, onde eu digo que preciso disso ou preciso daquilo, onde estou me referindo a todos os flautistas que já tocam em um certo nível técnico e que desejam tocar música de nossa época, isto é, após 1920, como a música de Gordon Jacob, ou as sonatas de Staeps, sonatinas do Stanley Bate, e todas outras músicas que devem ser tocadas com violinos modernos, oboés modernos, e especialmente com piano, pois nunca ouvi uma flauta barroca ou renascentista que realmente misturasse o seu som com o de um piano, os únicos instrumentos que realmente funcionam com piano são a flauta Eagle e a flauta Helder em minha opinião. Todos os outros instrumentos [antigos] simplesmente não casam bem com a qualidade sonora, padrão de afinação, ou com o fraseado dos instrumentos modernos, isto por que no período barroco as pessoas queriam tocar seu instrumento por causa da sua clareza, isso foi também um posicionamento retórico em relação aos outros instrumentos: uma “flauta simples” como se ela fosse a voz de Deus dizendo o que é certo e errado, e assim, não era permitido ao flautista usar técnicas de “sombra” [para mudar o colorido de cada nota], pois a flauta deveria soar como ela de fato é, então é assim que o flautista deveria tocar. Então, o papel retórico da flauta doce no Período Barroco era “a voz de Deus”, e a flauta deveria ser tocada em casamentos, funerais, e também em eventos grandiosos. Vemos isso claramente nas cantatas de J. S. Bach, que só se utilizam flautas doces nas cantatas relacionadas à morte de alguém, ou quando é relacionada à alegria extrema, e isso está em relação com a maneira de tocar muito “straight” [técnica, direta e segura].

É claro, devemos mencionar algo sobre o período que o sistema de afinação [temperamentos] começa a entrar numa área mais nebulosa, onde as quintas puras acabam, mais ou menos em 1810 começa a ser usado o princípio do temperamento igual onde não existem quintas puras, e se usamos uma flauta doce que toca quintas puras, todos outros vão dizer que a flauta está desafinada, pois ninguém mais quer ouvir uma quinta pura, mas sim, querem ouvir uma “coloração” ou “sombra” de quinta justa, algo próximo de uma quinta e não uma quinta pura.

Em um certo momento, o vibrato começa a ser usado. Mas se você toca uma nota plana na flauta doce como dizendo “Este é um lá”, mas ninguém quer ouvir um lá, querem ouvir “isso é algo parecido com um lá” [cantarolando com muito vibrato]. Talvez seja um lá, mas talvez não. Sendo assim, toda aquele ideal sonoro da verdade e da voz de Deus não existe mais, pois a música não é baseada na verdade, mas sim, em “escalas temperadas”, então, todo o seu sistema estético muda, e então, com Schoenberg, passamos a ter tantas variações e técnicas de coloração e sombras em todos os instrumentos, o desenvolvimento do som que chamamos de “música colorida” ao invés de uma melodia que possui apenas uma cor do início ao fim, então se usamos um instrumento barroco não temos como mudar a cor, pois o instrumento simplesmente não pertence à este padrão estético musical.

Mudança de coloridos, técnicas de sombras, de fato estas são as principais possibilidades da Helder contralto, que possui uma chave de dinâmica que te possibilita um pouco mais de coloridos, é claro, a acústica deste instrumento nos dá uma maior tessitura e quanto a isso, é excelente ter uma chave para alcançar uma nota abaixo do fá grave, a sensível mi para fá, que é algo que sentimos falta nos instrumentos barrocos, como por exemplo quando os flautistas querem tocar as sonatas solo para cello de Bach, que eles precisam transpor o mi grave oitava acima, ou então tocam fechando parte do furo de baixo com a perna para alcançar o mi grave, mas com isso [fechar o furo com a perna] o som parece simplesmente estúpido.

Claro, você pode fazer coisas estúpidas quando apenas outros flautistas estão ouvindo o que você toca, mas quando tentamos ser músicos profissionais em nosso próprio tempo, e você tenta ser reconhecido não apenas por flautistas, mas também por oboistas, trompetistas, e você deseja que outros músicos digam: “Isso é muito bom”, você vai parar de tapar o furo de baixo com a sua perna, por que isso não é legal e soa como se não fosse nada.

Todos estes meus impulsos foram muito importantes aqui em Karlsruhe, e por isso, na Universidade de Música, a flauta doce não faz parte do departamento de música antiga, mas sim, faz parte do departamento de instrumentos de sopro, e é por isso também que eu tenho como desafio pessoal apresentar o meu instrumento para meus colegas na universidade como “iguais”, e é por isso que eu trabalho tão duro no desenvolvimento das flautas modernas, pois todos os instrumentos tocam música de nossa época, mas os outros tocam com instrumentos também de nossa própria época. Penso que esta é a forma correta de agir: Se você é um oboista, você compra um oboé moderno; se você se interessa por Bach, você toca Bach no seu instrumento moderno; e se você é muito interessado em Bach, você compra uma réplica de um oboé que era usado na época de Bach, um instrumento histórico. Se você for apaixonado por Mozart quando você toca clarineta, você começa tocando em sua clarineta moderna, mas se for muito apaixonado, aí sim você compra uma clarineta histórica, alguma forma de cópia autêntica de um instrumento antigo da época de Mozart, mas isto não é necessário. Acho que esta é a maneira certa de agir, também para quem tocar flauta doce no futuro, imagino que deva ter a sua flauta doce moderna nos mesmos padrões dos outros instrumentos modernos, e tocar nesta flauta toda a música que conhecer, desde o repertório atual até a música de do passado remoto como Guillaume de Machaut, mas é claro que caso se interessar muito por Machaut, em algum momento de sua vida, quando tiver dinheiro suficiente, ele vai procurar um instrumento usado pelos contemporâneos de Machaut; se amar tocar a música de Bach, é claro que em algum momento vai querer ter uma flauta do período de Bach, mas de qualquer maneira, este flautista deve começar com uma flauta moderna, que realmente funciona super bem, e isso é para os flautistas e professores do futuro uma das coisas mais importantes, e o que posso assegurar é que caso este desenvolvimento das flautas modernas não der certo, a flauta doce simplesmente desaparecerá do cenário profissional da música de concerto.

O Amsterdam Loeki Stardust Quartet

O início

Você tocou num assunto ao qual eu gostaria de perguntar a você, a respeito do cenário profissional da música de concerto. Você participou por 30 anos do Amsterdam Loeki Stardust Quartet e neste grupo você se tornou conhecido mundialmente. Por isso, gostaria que você compartilhasse conosco algumas experiências, ou objetivos que vocês tinham no início do grupo, por que vocês começaram a tocar juntos, por que decidiram por parar os trabalhos do grupo, você é quem decide o que quer compartilhar conosco, mas creio que os nossos leitores do FlautaDoceBR gostariam de saber um pouco mais dos bastidores deste importante grupo.

Oh, claro. Certamente, 30 anos de trabalho em conjunto é verdadeiramente muita coisa para contar e é muito difícil escolher o que contar. Mas posso contar algumas coisas, e você decide o que deseja publicar.

Nós começamos pois nós quatro éramos estudantes do Conservatório de Música de Amsterdam e da mesma universidade, e nossos professores Walter van Hauwe e Kees Boeke. Nosso principal professor foi Kees Boeke, e ele queria que nós preparássemos uma peça para consort de 6 instrumentos, e ele simplesmente escolheu 6 alunos aleatoriamente, disse que tínhamos que tocar em conjunto e preparar a música para o próximo mês, pois tínhamos aulas uma vez por mês apenas, e no próximo mês vocês deveriam apresentar este repertório: música inglesa para consort a 6 vozes.

Começamos então a pesquisar o repertório, e no primeiro ensaio, dos 6 integrantes apenas 4 apareceram, nós quatro [Karel van Steenhoven, Paul Leenhouts, Daniël Brüggen, Bertho Driever]. Esperamos muito tempo e ninguém mais apareceu, então começamos a improvisar e fazer coisas estúpidas juntos.

No próximo ensaio, apareceram 5 pessoas, nós 4 e mais um, e como ainda faltava um de nós não pudemos ensaiar o que deveria ser ensaiado. Na terceira semana, apenas nós quatro estávamos no ensaio, mas desta vez estávamos preparados para esta situação, então um de nós havia trazido música a 4 vozes, então pudemos tocar por algumas horas, mas logo depois começamos a improvisar e fazer brincadeiras novamente. E neste momento decidimos que devíamos preparar para a aula apenas música a 4 vozes, e “demitimos” os outros dois colegas que não apareciam nos ensaios, e não deixamos que eles participassem da aula, pois nós queríamos aquela aula e eles não poderiam atrapalhar. Foi assim que o grupo de fato começou, nos encontramos em um sexteto onde logo em seguida demitimos dois dos participantes.

De alguma forma, algo mágico aconteceu, nós quatro ficamos apaixonados pelo som que resultava do grupo, era muito legal quando improvisávamos juntos, e também quando tomávamos cerveja juntos, e assim decidimos seguir com o grupo.

Mas Kees nos disse: “Não, vocês devem continuar o grupo com 6 vozes!”, e ele escolheu outros dois flautistas para tocar conosco, e então, dissemos a ele: “Ok, nós faremos o consort a 6 vozes, mas continuaremos o quarteto para a nossa própria curtição”.

Esta foi a maneira pela qual o grupo começou, e o nome veio em seguida. Tínhamos que nos apresentar durante a aula, e para isso, decidimos apresentar o grupo com um nome estúpido. Era muito importante que fosse um nome estúpido, tinha que ter algo engraçado, tinha que ser muito longo, pois nós queríamos um nome maior que Academy of Music of Saint Martin in the Fields [muitas risadas].

Decidimos isso por que pensamos que em algum momento no futuro, se estivéssemos em um pôster tocando no mesmo evento ou festival ao qual a Academy of St. Martin in the Fields também estivesse, o nome seria realmente longo. Amsterdam Loeki Stardust Quartet foi o nome escolhido.

Loeki foi uma peça engraçada que tocamos naquela época, foi para um comercial…

Eu ouvi falar sobre isso, vocês tocaram para a TV, ou algo assim, é isso?

Sim! Você viu isso em nosso CD ou DVD? Havia um pequeno leão…

Ah sim, ele tocava flauta doce, ou algo assim!

Isso mesmo, nós gravamos o que o leão tocava durante o comercial.

Os ensaios

Pensando em nível profissional, um grupo que faz 3 ensaios para fazer um concerto, não é possível tocar em um alto nível.

Foi assim que começamos a tocar juntos, começamos improvisando, e por isso todos ensaios começavam com 1 hora de improvisação, não apenas com flautas doces mas também no piano eletrônico, violão, nós também inventamos alguns sons usando o aspirador de pó. De fato, o aspirador de pó tinha um lugar cativo em nosso grupo, nós também fizemos todo tipo de tubos estranhos para adaptar as flautas doces ao aspirador de pó, é claro que o aspirador em um lado ele suga o ar e do outro ele assopra, então colocamos muitas flautas adaptadas ao aspirador de pó, e junto a isso criando muitos sons estúpidos.

Este era o nosso mundo, fazendo coisas estranhas e curtindo fazer música juntos. Fizemos cada vez mais coisas juntos, e ensaiávamos 2 vezes por semana, começando às 8 da manhã até às 8 da noite…

Sério, 2 dias por semana, e o dia inteiro cada ensaio?

Sim, ficávamos o dia inteiro juntos ensaiando, e muitas vezes após o ensaio ainda saíamos para ir ao cinema, ao teatro ou para tomar cerveja juntos, então vivíamos como uma família.

Eu posso falar um pouco da nossa experiência… no início do Quinta Essentia ensaiávamos 2 vezes por semana sendo que um dos ensaios era muito longo e o outro não tão longo. Atualmente ensaiamos 3 vezes por semana com 4 horas de ensaio cada um. Gostaríamos de ensaiar mais, porém todos nós lecionamos e possuímos outros trabalhos em paralelo, mas mantemos os ensaios como um “horário sagrado” sem abrir mão deles por causa de outros trabalhos.

Isso é realmente muito importante, pois sem ensaios você nunca chegará ao nível profissional.

Nós acreditamos nisso também. Existem muitos grupos que ensaiam apenas algumas vezes antes do concerto, apenas quando há concerto marcado. Nós pensamos que isso não funciona.

Isso não é possível.

Então você pensa que isso não é possível, ensaiar apenas para o concerto?

Não, isso não é possível. Pensando em nível profissional, um grupo que faz 3 ensaios para fazer um concerto, não é possível tocar em um alto nível.

Nós acreditamos nisso também.

Isso seria possível para um grupo que trabalhou junto por muitos anos a fio, com muitos ensaios, tocando muitos concertos juntos, e após tudo isso o grupo decide que não pretende desenvolver nada novo, tocando apenas o repertório antigo, apenas com os instrumentos que já foram usados anteriormente. Neste caso, poderíamos dizer: “Ok, já nos conhecemos bem o suficiente, sabemos como reagir e não temos mais nada novo a criar ou desenvolver, então vamos apenas ensaiar para os concertos”. Mas isso seria algo muito chato, e a plateia ficaria de saco cheio rapidamente, e isso não seria uma boa escolha para qualquer grupo profissional, pois um grupo profissional sempre busca surpreender a plateia, sempre deve trazer novas ideias, mesmo quando são poucas ideias, você deve surpreender, estar nos limites das possibilidades. Isso é muito importante.

Outra coisa que para nós era muito importante, era a performance historicamente orientada…

A música antiga

Isso também é um assunto muito importante para nós do Quinta Essentia, e tem relação ao que você falou antes, a respeito dos instrumentos antigos e modernos.

Então especialmente quando começamos, todo este movimento em prol da Música Antiga, o fato de não músicos, me refiro aos músicos teóricos ou musicólogos, estavam interessados na história da música e na prática da música antiga e isso era algo completamente novo no séc. XX. Antes disso, ninguém estava interessado em música historicamente orientada, mas apenas em como devemos tocar a música antiga hoje. Nenhum músico do período barroco poderia tocar em um instrumento da Renascença, ele tocaria no seu instrumento “atual” barroco. Indo mais além, um músico francês deveria tocar apenas em flautas doces francesas, eles nunca usariam flautas doces italianas, pois eles precisavam tocar bem, então usavam os seus próprios instrumentos.

Naquela época, a corte francesa era realmente poderosa, então muitas pessoas passaram a gostar da música francesa, passaram a comer como os franceses, e assim o estilo francês foi promovido por toda a Europa, exceto na Inglaterra, que estava muito mais impressionada com a música italiana.

Então, as pessoas sempre estiveram interessadas em seu próprio estilo e no estilo de sua época, mas no séc. XX, com o movimento da música antiga, as pessoas passaram a se interessar por tocar em outros estilos, de épocas passadas. Mas como isso aconteceu? Com Frans Brüggen e alguns outros grandes músicos e compositores, começaram a fazer a “Nut Cracker Operation” [Operação Quebra Nozes], você conhece algo sobre isso?

Sim, já li a respeito.

A principal frase que ele disse foi: “Cada nota que a Orquestra do Concertgebouw Amsterdam toca é uma mentira”, e o que ele quis dizer é que a orquestra não soava da maneira em que aquela música deveria soar quando foi composta no passado, eles apenas tocavam da maneira que gostavam, hoje em dia.

Então para a prática da música antiga, os músicos buscam livros antigos, pinturas e ilustrações de cada período, e também instrumentos que ainda são encontrados, tentando encontrar as maneiras que as pessoas no passado realmente tocavam estes instrumentos, como eles articulavam, então um mundo completamente novo surgiu no cenário musical. Muitos músicos se interessaram por isso, e também musicólogos, e eles trabalharam juntos para descobrir como a música era feita no passado.

Isso tudo por um lado é muito interessante, mas por outro, como músico, você é colocado de certa forma dentro de um museu, e se você como músico tocar exatamente dentro das regras descritas nos livros ou dentro da opinião dos musicólogos ou teóricos, onde estará o ser humano que faz arte? Onde está a sua sensibilidade musical? Isso é uma maneira muito esquisita de agir.

Também falando sobre este problema, por exemplo, em nosso quarteto, nós fizemos uma extensa pesquisa sobre música espanhola composta em torno do ano 1500 até 1600 com alguns musicólogos, nós gravamos um disco com este repertório, com um estudo musicológico muito profundo sobre este repertório, mas, você como músico, quando trabalha intensamente numa pesquisa por cerca de 6 anos, você sabe tanto sobre determinado assunto, e você não pode esperar que a plateia saiba tanto quanto você, então você traz uma música para este público que não conhece muito a respeito, eles não leram todos os livros que você leu, então eles não conseguem entender a profundidade da sua arte, e assim, você cria uma grande lacuna entre você, artista, e o seu público. Você entende o que estou dizendo?

Sim, claro!
Eu concordo contigo.

Este é o problema deste tipo de “arte de museu”, quanto mais você sabe, quanto mais se dedica, quanto mais delicada, inteligente e sofisticada se torna a música, mais difícil será para o público compreender o que você está fazendo. E tudo isso por que vivemos em uma outra época.

E isso para o nosso grupo foi de certa forma um problema. Quando você vai realmente fundo na música, o público deixa de entender o que se passa. E por isso, o nosso desafio foi sempre tentar traduzir estas ideias para atrair um público cada vez maior, pois não queríamos tocar para 2 pessoas apenas, ou tocar para classes de alunos que já leram todos os livros. Nós queríamos tocar e agradar um grande número de pessoas com nossa música, então, pensamos que não devemos fazer apenas algo com o ritmo, mas também, analisar o impacto do nosso trabalho em nosso público.

Se alguém como Ganassi ou Bassano, quando eles tocavam para a sua família com suas flautas doces ou violas da gamba, qual era o impacto da sua arte naquele público? E assim, tentamos transpor este mesmo impacto para as pessoas desta época, pensar como podemos acrescentar ao movimento da música antiga alguns elementos que estimulam a plateia ou que ofereça “algo mais” para que as pessoas fiquem maravilhadas novamente a respeito da música do passado.

Imagine, se alguém conta uma piada antiga, todos já conhecem a piada, e assim ninguém mais ri daquela piada. Este é mais ou menos o caso da música antiga. Então, você deve acrescentar algo novo aquela piada antiga, que ninguém ainda pensou ou percebeu. Ou então, contar a piada de uma forma completamente inesperada, ou mesmo nem mesmo contar aquela piada, contando algo completamente novo, mas com o impacto daquela piada antiga.

Realidade ou fantasia?

Este assunto é muito interessante, e nós pensamos quase o mesmo que você nos contou, de fato temos alguns guias ou regras a seguir a respeito da música barroca, pois precisamos dessas orientações do passado para ajudar no processo criativo, tentamos usar os instrumentos corretos de acordo com o período, mas, não precisamos ficar presos aos livros antigos e a todas estas regras, tocando apenas da forma em que os livros nos indicam. Mas eu penso, em nosso caso há algo diferente, pois vivemos no Brasil e não na Europa, e como estamos distantes desta cultura, temos a liberdade da licença poética de tocar de acordo com a nossa própria interpretação, acho que é o mesmo quando um europeu toca música brasileira, por exemplo, pois ele vai tocar de uma forma diferente.

Exato, é mais ou menos como comida, se você vai para a Itália você vai comer de fato comida italiana, que é fantástica, deliciosa. Mas se um cozinheiro italiano vem para a Alemanha e se ele quer que muitos alemães comam a sua comida, ele precisa adicionar algo alemão ao seu estilo italiano. Assim, comida italiana na Alemanha não tem o mesmo gosto que a comida italiana da Itália, pois aqui as pessoas possuem um paladar um pouco diferente, mas eles querem ter a sensação de comer comida italiana.

Acho que isso funciona da mesma forma com a música. Então, se você leva música de um país para o outro, você está livre para fazer a música ligeiramente diferente, e se você leva a música de um período para outro período, você está livre para fazer a música ligeiramente diferente. E se você não faz isso, por ser muito dogmático em suas escolhas – como um cozinheiro chinês que vem para cá e oferece exatamente a mesma comida que ele oferece na China – certamente terá o seu restaurante vazio, pois ninguém está realmente interessado na verdadeira comida chinesa, eles estão interessados na ideia de estar comendo comida chinesa. O mesmo acontece na música, ninguém está interessado na realidade, todos estão interessados na ideia da realidade.

Creio que isso tem a ver com a fantasia, acho que esta seria a palavra correta para este comportamento. Pessoas procuram por uma fantasia sobre determinado assunto. Enquanto tocamos um concerto, oferecemos ao público uma fantasia a respeito de um repertório ou uma época.

Sim, você está correto, os elementos mais importantes de levar a música e tocar música, bem, a palavra “play” [que significa tocar, brincar e jogar em inglês] descreve bem o que venho dizer, você é brincalhão, você é “chique”, e mesmo muitas músicas são Fantasias, então o que você está fazendo com o público é criar uma fantasia e dando a este público a possibilidade de usar esta fantasia, e esta é uma das principais coisas que buscamos com o quarteto, você pode tocar a música como num livro, ou você pode tocar a música como num filme. Em um filme você nota as coisas tão claramente, você vê as pessoas, os personagens, a sua maneira de agir, então a sua fantasia é rebaixada. Mas, se você lê um livro, as descrições nem sempre são tão claras, então a sua fantasia está num nível muito mais alto, e você pode criar seus próprios personagens lendo um livro.

Isto é outra coisa que tentamos fazer em nosso quarteto, tocar de uma determinada maneira em que o público possa criar eles mesmos a própria fantasia, usando a própria fantasia para deixar a música viva.

Uma regra para nós era “Não seja muito exato ou muito descritivo”, sempre fazer um contra-movimento, mesmo na linguagem corporal. Sempre prestávamos atenção em como nos portávamos, como nos movíamos, mesmo em vídeos, durante concertos, e sempre que percebíamos que alguém fazia os mesmos movimentos que outro, como cruzar pernas ou se movimentar para o mesmo lado ao tocar, isso era sumariamente proibido. Se alguém se movia para a esquerda, o outro devia se mover para a direita, se alguém cruzava as pernas, o outro tinha que colocar as pernas de outra forma, então tínhamos que ter uma grande cumplicidade no palco, e possuir um grande “vocabulário” de movimentos.

Imagine se você fecha o punho e bate na mesa dizendo “isso é certo”, franzindo o rosto, todos os seus movimentos transmitem exatamente a mesma mensagem, e fazendo isso não há escapatória possível ao público senão acreditar no que é dito. Mas se ao invés disso fizer outro gesto, ou talvez com outra entonação de voz, cada um em uma direção, o público imediatamente irá “flutuar” e terá que combinar os elementos contrastantes para obter a mensagem original novamente. Isso era o que sempre buscávamos para nossos concertos.

Essa é uma ideia excelente! E isso tem profundas ligações com o que conversamos ontem à noite, sobre comunicação do artista com o público no palco, e como se comportar no palco. Acho que isso está muito conectado.

No Quinta Essentia, discutimos muito sobre isso: o que nós queremos? Simplesmente tocar juntos? Cada um de nós tem liberdade para fazer sua própria música, ou deve ter liberdade para fazer as próprias intenções musicais?

Estas questões devemos fazer a nós mesmos todos os dias, pois se não se questionar a cada dia, a cada momento, será muito fácil se perder e passar a fazer música automaticamente, e é muito fácil que isso aconteça.

Você mesmo disse, vocês tinham uma regra, mas a cada momento vocês tinham que prestar atenção e se questionar, e se for o caso, voltar atrás e trabalhar para que não aconteça novamente.

E é claro, quando você toca em conjunto, especialmente quando já tocamos junto com as mesmas pessoas por um longo período, todos têm a tendência de se imitar o tempo todo. Isso é normal e é bom, nós fazíamos inclusive piadas quanto a isso: Agora vou tocar igual o Daniël, agora vou tocar como o Paul [risadas], então muitas vezes nos imitávamos e trocávamos de papéis, só pela curtição, isso é muito importante, mas por outro lado você deve ter muito cuidado pois com isso tiramos um pouco da liberdade da outra pessoa, como por exemplo, em um concerto você ouve um ornamento muito bonito em certo lugar da música, e pensa “Uau, que legal este ornamento”, e no próximo concerto você toca este ornamento e com isso você tira a liberdade do colega de tocar este ornamento de novo [mais risadas]. Ou você toca o ornamento e naquele lugar haverá dois ornamentos iguais. Então, precisamos dar espaço para os colegas de criar as próprias ideias, imitação é muito importante, pois se eu roubo a ideia de outro colega durante o concerto, então, este outro colega é estimulado a ser mais criativo e criar algo ainda mais novo.

Acho que este tipo de estímulo nos faz tocar cada vez melhor!

Sim, com certeza!

Desafios são muito importantes neste caminho, mas algumas vezes, se somos desafiados ao extremo, pode ser que desistimos de continuar. Deve haver um certo equilíbrio!

Exato, você precisa ter algumas experiências com êxito, para perceber que isso tudo vale a pena, isso é muito importante!