Como vivenciar experiências positivas em uma situação de competição.
Os cuidados que devemos ter ao encorajar um aluno a participar de um concurso.
Um relato de uma professora e dos pais sobre a preparação da flautista
Trabalho com o método Suzuki de flauta doce há 17 anos e sempre procuro alimentar o dia-a-dia dos meus alunos com informações e oportunidades relacionadas à flauta doce. Isso significa divulgar concertos, cursos, eventos, master classes, oportunidades de tocar com orquestra, viagens, e… concursos… por que não concursos?
Sei que alguns professores são contra a participação de alunos em concursos. Já ouvi diversos comentários relacionados às experiências negativas com alunos crianças e, principalmente, alunos Suzuki. De certa maneira eu também era contra, até que a experiência me mostrou o contrário: que podemos aprender muito, mesmo em situações de competição. Principalmente se soubermos escolher o evento correto, e nos preparamos de acordo com o trabalho que vem sendo realizado. Esse meu pensamento começou a mudar em 2001.
Em 2001 participei de um concurso de flauta doce com diferentes categorias no sul do Brasil. Na ocasião, levei uma aluna de 6 anos. Foi uma experiência muito positiva pra ela e para mim. Pudemos compartilhar a preparação para o concurso e também os resultados. Lembro que fiquei com uma boa impressão de participar de concursos, pois aprendi na ocasião que a preparação era a parte mais importante de todo o processo. A escolha do repertório, os ensaios, as aulas, e até assistir as outras provas da competição, todas essas situações valem muito a pena, mais do que qualquer resultado de uma competição.
Apesar disso, tenho consciência do lado negativo dos concursos, e principalmente do que isso pode gerar no emocional de uma criança: expectativas, frustrações, comparações, etc.
Por isso, sempre tomo muito cuidado ao expor meus alunos em situações de competição.
Por este motivo, gostaria de compartilhar com vocês a experiência mais recente sobre a participação de uma aluna em um concurso importante de flauta doce.
O concurso
Quando recebi a divulgação do ORDA – Open Recorder Days Amsterdam (2015), repassei para todos os meus alunos e suas famílias. Muitos deles tinham boas condições técnicas e musicais de participar, idade para entrar em uma ou outra categoria, mas acho que a maior dificuldade seria a financeira. Viajar para um outro país, agora com o câmbio enlouquecido, é quase inviável.
Algumas famílias me apresentaram diferentes motivos para não ir ao ORDA. Além do financeiro, por achar que não era o momento para o aluno se expor com tamanho investimento de tempo e dinheiro; outras famílias disseram que preferem evitar situações de competição para seus filhos.
Minha postura nesses momentos é sempre: divulgar o evento. Quem decide se vai, se pode e deve participar, são os alunos e suas famílias, não eu. E, mesmo que a resposta seja negativa, continuo divulgando os eventos futuros. É importante para pais e alunos saberem que existe vida para o seu instrumento fora da sala de aula ou da comunidade musical em que você está inserido.
Dessa divulgação, a família da Júlia Abdalla (7 anos) aceitou o desafio. A Júlia teria condições de participar da primeira categoria do ORDA – 7 a 11 anos. Seria talvez a concorrente mais jovem, mas seria uma excelente experiência.
Por que divulguei o ORDA? Porque não se tratava apenas de um concurso de flauta doce, mas sim de um grande evento de flauta doce na terra da flauta doce.
Para quem não sabe, a Holanda é um país de excelentes flautistas.
O ORDA tinha em sua programação palestras, concertos, exibição de instrumentos, além de diversas provas de categorias diferentes do concurso para que a Júlia pudesse encher os olhos e o coração com música para flauta doce. Ou seja, o melhor cenário para apresentar a um aluno de flauta doce, e a oportunidade ideal de participar de um concurso sem o peso de ser apenas um concurso, podendo usufruir de outras atividades atenuando a importância da competição.
O desafio
Os pais da Júlia também são músicos e sabem da importância de um evento como esse na vida de um estudante de música. Quando eles aceitaram o desafio, iniciei a minha estratégia de trabalho.
Para o ORDA a Júlia teria de tocar 10 minutos de música.
10 minutos de música para quem faz aula de flauta doce há 1 ano e meio, em se tratando de um instrumento de sopro, é um desafio e tanto.
Além disso, já que o investimento financeiro seria grande, eu precisava prepará-la de maneira que ela tivesse alguma chance. Essa chance para mim se tratava de: tocar bem um bom repertório, tecnicamente e musicalmente adequado para idade e técnica dela e de tranquila memorização para estudantes que não lêem música, tudo isso para que ela fizesse um lindo concerto fora do país.
O que era preciso para isso:
- Repertório: A escolha não é algo fácil. Repertório para um concurso tem que ser algo bem pensado. Algo que possa mostrar as possibilidades do intérprete e que esteja dentro das possibilidades dele. Que de alguma maneira apresente um certo desafio para o intérprete, pois ele irá trabalhar intensamente por um bom tempo o mesmo repertório, e que seja atrativo em uma situação de prova, onde a banca estará cansada de ouvir repertórios parecidos em longas horas de prova.Para esse aspectos, minhas estratégias foram:
a) escolher algo que ela já tocava: Larghetto da Sonata em Fá maior de Handel (Suzuki Livro 2)
b) como artisticamente penso não ser adequado tocar apenas trechos de peças, pensei então no desafio para a Júlia: tocar a Giga da mesma sonata, que aparecerá apenas no livro 3 em seu repertório de estudo (Suzuki)
c) para completar o tempo da prova, o que a Júlia poderia oferecer de diferente para o público e banca presente: Música Brasileira! OBA! Então o desafio para mim era encontrar música brasileira original para flauta doce que estivesse dentro das possibilidades de um aluno Suzuki de livro 2. Foi assim que escolhi as 5 miniaturas brasileiras de Villani-Cortês. - Preparar tudo: “Sem pressa e sem descanso”: período fevereiro a abril. A escolha foi de fazer aulas extras para dar tempo de preparar tudo, sem deixar para a última hora. Quando preparamos as atividades com tranquilidade, temos um resultado que transborda tranquilidade.
- Prática em casa: Tive a ajuda dos pais que sabiam bem o que fazer pois já estavam acostumados com o processo. Decidimos que ela faria o repertório da prova acompanhada pelo pai ao violão, o que daria mais segurança para ela ao tocar em um país estrangeiro.
- Preparar e praticar o emocional: Minha escolha foi conversar com os pais para realizamos apresentações do repertório do prova antes dela ir para o concurso. Em situações diferentes, para um público diferente. Simular as situações da prova foram de extrema importância no processo. Lidar com o emocional, lidar com as mudanças do instrumento (água, temperatura, coisas de flauta doce), afinação, palco. Além disso, era preciso envolver a aluna no processo de preparação. Para isso fizemos um calendário onde ela marcava os recitais extras, aulas extras, ensaios, e sim, as datas da viagem. Ao fim de cada dia a aluna colava adesivos para tornar concreta a passagem do tempo.
Fizemos três apresentações antes da prova. Em uma delas, no dia da apresentação, Júlia teve febre. Não estava se sentindo bem pela manhã, todos achamos que ela ficaria doente, e na hora da apresentação, tudo havia passado e ela estava muito bem nos dias seguintes. O que ficou muito claro para nós adultos (pais e professora) que a febre da Júlia foi apenas de fundo emocional. Neste momento tive a certeza que estávamos no caminho certo, pois estávamos também praticando o emocional.
Numa das apresentações que fizemos em uma livraria infantil perto do Centro Suzuki, a livraria divulgou a apresentação e a história da Júlia. Desta maneira, alguns jornalistas nos procuraram para entrevistar a Júlia e contar essa aventura.
Minha postura foi sempre de dizer para a Júlia o que significava participar de um concurso. Dizendo que o resultado do concurso se tratava de uma boa apresentação e da experiência que ela ganharia tocando em um outro país.
Os pais repetiam as mesmas coisas para ela, todos estávamos falando a mesma língua.
Essa postura foi tão positiva pra Júlia que ao ser entrevistada pela Folha de São Paulo, um importante jornal no Brasil, sobre o que ela imaginava que encontraria na Holanda, ela respondeu:
“Imagino um monte de gente que toca bem reunida. E uma plateia em círculo, de onde dá pra ver os músicos por todos os lados”
“Quem tocar melhor vai ganhar um troféu, mas o melhor troféu pra mim é ir para Amsterdam”
Ao ler as respostas da Júlia, percebi que o nosso trabalho até ali havia sido realizado com êxito. Afinal as expectativas dela não eram: vou ganhar ou não vou ganhar. Estava mais para: vou aproveitar tudo o que eu puder!
A Júlia chegou em Amsterdam com o pai e realizou a primeira prova. Recebi inúmeros e-mails e mensagens de colegas de profissão que lá estavam e viram as provas da Júlia. Todos ficaram encantados. Ela aproveitou tudo o que podia, fez lindas provas. Para todos nós, todo esse resultado lá, somado à preparação que tivemos aqui, já foi incrível.
Quando ela foi para a final, os pais me disseram que não imaginavam que ela iria chegar tão longe. Eu sabia que ela estava bem preparada, mas nunca comentei ou mencionei algo para não gerar expectativas das quais mencionei anteriormente. E também, porque eu não tinha como prever o que aconteceria lá. Quais crianças estariam na categoria dela? Como essas crianças estariam preparadas? Quais os critérios do concurso para selecionar um flautista ou outro? Enfim.
Mais uma experiência que serviu para me mostrar que os concursos podem ser grandes alimentadores do ambiente musical favorável para a construção da habilidade que queremos cultivar em nossos alunos.
A Júlia voltou super motivada. Aprendeu muita coisa sobre o seu instrumento em tão pouco tempo e da melhor maneira: com o exemplo. Agora ela carrega essa experiência incrível em suas interpretações e em sua relação com o instrumento e exala essa energia por onde quer que ela esteja, deixando todos os seus colegas no Centro Suzuki com a mesma alegria de fazer música, em tocar flauta doce.
Ela até comentou comigo: Renata! Eu não consigo parar de tocar!!!!!
Eu perguntei para um outro aluno (6 anos) se ele estava com o mesmo vírus da Júlia, e ele me respondeu: Ah! sim… mas acho que todos os teus alunos estão com esse mesmo vírus!
Depois dessa experiência, deixo aqui o relato dos pais da Júlia, com o olhar deles sobre tudo o que ocorreu!
Relato dos Pais
A Júlia foi uma criança que teve oportunidade de vivenciar e experimentar música e jogos musicais desde muito cedo, possivelmente ainda no período de gestação. Escutar a mãe cantando, o pai praticando violão, áudios e vídeos que englobam músicas de diversos períodos e estilos decerto influenciaram seu processo de musicalização natural empírico. Desde cedo usou elementos da linguagem musical em suas brincadeiras, cantando, dançando e compondo ritmos e melodias.
Não obstante a isso, nós (pais) a estimulamos na prática do piano e do violão (os instrumentos da casa…). Contudo, faltava a disciplina necessária para que essas práticas se desenvolvessem com periodicidade e motivação.
Conhecendo a Renata Pereira, sabendo que ela ministrava aulas para uma garota da mesma idade e que havia um horário disponível, veio a oportunidade de começar o estudo de um outro instrumento: a flauta doce. Isso preencheu significativamente sua motivação e a disciplina de estudo.
A partir daí, o desenvolvimento ocorreu de forma ao custo de centenas de repetições para assimilar uma boa postura, desenvolver sonoridade, afinação e interpretação de diferentes estilos musicais (fraseado, articulação, respiração e demais elementos de interpretação). Nesse sentido, a metodologia Suzuki, por meio da Profa. Renata, estabeleceu o elo dos pais-professora-aluno, trazendo à Júlia um excelente desenvolvimento técnico e musical.
A participação do Open Recorder Days Amsterdam veio a estimular a prática de um repertório distinto, lapidado ao limite por meio de:
1) aulas direcionadas,
2) estudos diários com acompanhamento da mãe e
3) ensaios regulares com seu pai, que a acompanharia ao violão durante as apresentações.
Desde o momento em que Renata nos incentivou a inscrever Júlia na categoria de 7 até 11 anos, do ORDA, trouxemos também nossa filha para decidir se participaria ou não, tendo em vista as intensas 10 semanas de estudo que se seguiriam.
Júlia passou a fazer aula 2 vezes por semana para assimilar todos os detalhes interpretativos do novo repertório. E a rotina de estudos ficou mais intensa em casa. O prazo que parecia bastante apertado foi, aos poucos, mostrando-se exequível.
Em casa, procuramos ouvir muita música, diferentes interpretações das peças de Handel e contextos históricos e estéticos que fundamentam as Miniaturas, de E. Villani-Côrtes (1930). Conhecer o contexto dos estilos musicais brasileiros assim como improvisar sobre suas sonoridades, foram estratégias utilizadas em nossas seções de estudo caseiras.
Quanto mais as peças ficavam bem tocadas, mais Júlia gostava de praticar.
Pequenos recitais para “esquentar” ocorreram em diferentes lugares de São Paulo antes da viagem: um no Centro Britânico, outro na livraria Nove Sete, e outro na Tom Jobim – Escola de Música do Estado de São Paulo.
Em sua escola regular, Júlia fazia apresentações constantes aos seus colegas de sala, tornando isso uma pequena rotina, que ela adorava, envolvendo a professora e os colegas.
Para nós, o objetivo já havia sido conquistado! Júlia estava muito feliz em tocar e sentia um enorme prazer em fazer música!
Já durante o ORDA, em Amsterdam, Júlia pôde assistir a crianças e adolescentes tocando magistralmente músicas do Renascimento ao Contemporâneo para diferentes formações que englobam a flauta doce. A cada retorno ao hotel, ela emulava aquilo que vivenciara no mesmo dia. Um desenvolvimento acentuado foi inevitável tamanho o grau de imersão no universo da flauta doce. Além de assistir as provas, houve apresentações e mostra de instrumentos de fábrica e de luthiers em que ela pôde experimentar sem restrições. Incluímos aqui o carinho e atenção que toda a equipe do festival teve com os concursantes.
Júlia voltou vitoriosa sim! Viveu experiências intensas e, principalmente, tocou o repertório desafiador de forma respeitosa para com o texto musical.
A partir desse ponto, sentimos que a Júlia continua sendo a mesma criança, mas agora inclui a flauta doce em seu universo de brincadeiras.
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Júlia é aluna da flautista Renata Pereira no Centro Suzuki de educação musical em São Paulo desde os 5 anos de idade. Veja abaixo a entrevista da Júlia na TV Aparecida sobre o resultado do concurso ORDA 2015.
https://www.youtube.com/watch?v=IEsxWibmKjk
Mais…
A participação a Júlia no ORDA rendeu também a aparição dela na revista Alemã especializada em flauta doce WINDKANAL
3 Comentários para "Flautista Brasileira de 7 anos é premiada na Holanda"
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Inglês ● Post
Como professora de música e mãe, não pude deixar de me emocionar. Parabéns à todos os envolvidos no processo!!!!
Qual o modelo da flauta que a Julia toca?
A Julia tem mais de uma flauta de modelos diferentes. Nas fotos e vídeos deste artigo, ela usa uma flauta soprano Denner da Mollenhauer.