Flageolet francês – Redescobrindo o Romantismo

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03/14

por Rubens Küffer

Flageolet Frances

Em dezembro de 2013 tive a felicidade de encontrar em um antiquário búlgaro de instrumentos antigos um flageolet francês, assinado por Martin Thibouville Ainé e datado de 1860. O instrumento estava em pefeito estado e possuía um sistema Boehm de chaves completamente restaurado. Consegui comprá-lo por um preço excelente e, agora, 3 meses depois, gostaria de compartilhar com vocês o que venho lendo, estudando e descobrindo sobre ele.

FlageoletUm pouco da história do flageolet:

Flageolets franceses e flautas doces coexistiram desde o final do século XVI, mas somente os primeiros continuaram  a ser usados e adaptados ininterruptamente até o século XX. Os primeiros flageolets franceses (é importante não confundi-los com os ingleses, que apareceram bem depois, no século XVIII) eram praticamente idênticos em sua forma a uma flauta doce, mas possuíam somente 6 furos: 3 para cada mão e somente os dedos polegares, indicadores e médios eram utilizados.

Assim como aconteceu com todos os instrumentos que transitaram de um período ao outro ao longo da história da música, o flageolet foi, então, passando por inúmeras modificações que serviam para suprir as novas necessidades estéticas. Primeiramente adquiriu uma espécie de bocal que se encaixava ao corpo principal do instrumento. Esse bocal era estruturado em 3 partes: um bico de marfim, madrepérola ou osso visualmente muito parecido com uma palheta de oboé (mas sem qualquer função vibratória – o som do flageolet é sempre produzido na janela, exatamente como uma flauta doce), seguido por um tubo de madeira ainda fino, mas que se alargava em direção à base e a base feita como um “barril”, bastante larga. As funções desse bocal eram as seguintes:

  1. Levar o ar mais indiretamente ao bloco/canal, tornando a afinação mais estável. De fato, é um pouco mais fácil não desafinar assoprando um pouco mais ou um pouco menos do que em uma flauta doce, por exemplo. Por consequência, realizar um vibrato de baixa amplitude também se torna mais fácil.
  2. Reduzir incrivelmente o eterno problema de entupimento do bloco/canal. A maior parte da umidade se deposita no “barril”, deixando o som sempre limpo. Alguns tratados citavam ainda o uso de uma pequena esponja nessa região, como uma forma ainda mais incisiva de resolver essa questão. Não tenho sentido essa necessidade.
  3. Tornar o ataque das notas mais delicado, embora se perca um pouco em nuances de articulação. A não ser que o instrumentista exagere muito, o instrumento tende a tocar bastante legato.

Ou seja, os primeiros flageolets franceses soavam muito parecidos com flautas doces, mas a partir do século XVIII e principalmente no século XIX, com essas mudanças em sua estrutura, o instrumento passou a apresentar um som bastante distinto e bem mais potente em termos de volume.

Outra modificação histórica que ocorreu foi a introdução gradativa de chaves, que culminou com a invenção do flageolet com sistema Boehm de 13 chaves, em meados do século XIX.

A extensão dos flageolets variava  um pouco de acordo com sua época, mas um flageolet da metade do século XIX ia do sol 4 até mais ou menos o si 6. É, portanto, um instrumento ainda mais agudo do que uma sopranino!

Acredita-se que muitas peças destinadas ao piccolo ao longo da história tenham sido pensadas para um flageolet francês! Purcell e Händel escreveram comprovadamente para ele e parece que várias partes de Rameau também.

Algumas dificuldades e descobertas pessoais:

FlageoletHoje em dia pouquíssimas pessoas tocam o flageolet francês no mundo. Praticamente todas as informações que temos sobre esse instrumento chegaram até nós por meio de tratados que foram escritos entre os séculos XVII e XIX. Esses tratados falam, em geral, um pouco sobre o sopro, sobre a estrutura, possuem tabelas de posições, além de músicas que podem ir desde um repertório muito simples até algo já de um nível bem avançado. Contudo, todas essas tabelas de posições exemplificam flageolets com até 6 chaves, contra as 13 do sistema Boehm! Outra coisa a se pensar é que quanto maior o número de chaves, maior a tendência a se poder tocar uma mesma nota de várias maneiras diferentes e, justo aí, foi onde surgiu meu primeiro grande desafio: conseguir entender quais seriam os dedilhados “normais” (aqueles que serão utilizados na maior parte do tempo) e quais seriam aqueles alternativos (a serem utilizados para determinadas passagens com combinações de notas específicas ou por possuírem características tímbricas ou de volume diversas).

Quebrei muito a cabeça para encontrar a solução: somente utilizando o repertório original dos grandes flageoletistas do passado teria como analisar aquilo que funciona quase sempre e aquilo que funciona só de vez em quando! Narcisse Bousquet foi um dos maiores virtuoses de meados do século XIX e deixou uma obra de 36 Estudos e 12 Grandes Caprichos para flageolet solo! São peças que levam a técnica do flageolet ao extremo, podendo ser consideradas de enorme dificuldade, mas são, sobretudo, peças escritas por alguém que tocava muito bem e sabia o que estava fazendo! Ora, se uma determinada passagem apresenta uma digitação absolutamente louca para a velocidade estabelecida, então é porque estou usando posições erradas (afinal, o sistema Boehm foi inventado para facilitar a vida do intérprete e não o contrário)! Notas ligadas que não funcionavam ligadas também foram grandes indicadores de que algo precisava ser mudado. A partir desse raciocínio, fui descobrindo (e ainda continuo) tudo aquilo que me parecia ser um quebra-cabeças totalmente sem sentido!

Uma dificuldade menor ocorreu em relação ao sopro. Um flageolet do século XIX precisa de muito mais ar do que uma flauta doce barroca e a pressão para se obter as notas extremamente agudas é, muitas vezes, bastante intensa. Como meu instrumento não era tocado há muito tempo e seu som vem se “abrindo” a cada dia, tive que testar bastante até perceber exatamente onde se encontrava o ponto ideal de intensidade e pressão do ar para cada região.

Conclusões:

FlageoletEstudar um instrumento original é uma possibilidade maravilhosa de se mergulhar num mundo esquecido, numa história que passou. Diferentemente de um quadro, um livro ou de uma maravilhosa obra arquitetônica, a música só reside no instante. Ter nas mãos um instrumento antigo é poder, de uma certa forma, reviver os gostos, a moda, a estética daquela época e trazê-los para agora! Pelas suas próprias características, é ele, melhor do que qualquer tratado, melhor do que qualquer professor, que nos ensina como era a música do passado.

Bibliografia:

  1. Bainbridge – English & French Flageolet Preceptor (fac-símile início do século XIX)
  2. Cavanagh – Preceptor (fac-simile, 1840)
  3. Collinet – Hand-Book (fac-simile,  1880)
  4. Freillon-Poncein – La vèritable maniére d’apprendre é jouer en perfection : du hautbois, de la flute et du flageolet (fac-simile, 1700)
  5. Gard – Méthod Complète de Flageolet sans Clés ou avec Clés (fac-simile início do século XIX)
  6. Wikipedia
  7. www.flageolets.com

Videos

Para os que tiverem interesse em ouvir como soam diversos tipos de flautas históricas, além de trechos de concertos que venho realizando aqui e no exterior, em cidades importantes como Roma e Lisboa, sugiro que visitem ou se inscrevam no meu canal do Youtube: https://www.youtube.com/user/lafontegara.

RubensRubens Küffer graduou-se em flauta doce (bacharelado) pelo Conservatório Brasileiro de Música em 1996, estudando com o professor Ruy Wanderley. No ano seguinte, venceu o II Concurso Nacional Jovens Cameristas, em João Pessoa (PB), integrando o conjunto Angelus. Em 2001, obteve o diploma de Mestrado em Interpretação pela Staatliche Musikhochschule Karlsruhe (Alemanha), na classe do professor Karel van Steenhoven. Lecionou flauta doce nas escolas de música de Herrenberg e Ehingen (Alemanha) entre 2001 e 2005. Durante esse período manteve um estudo particular com seu ex-professor e com o flautista Michael Form, em Basel (Suíça). Com os grupos Euterpe e Suoni e Silenzi realizou concertos na Alemanha e Suiça. Em 2005 voltou ao Brasil onde, paralelamente à sua atividade de professor, se apresentou como solista e camerista inúmeras vezes. Nos últimos anos tem trabalhado em parceria com alguns compositores que lhe dedicaram uma dezena de peças. Suas últimas atividades como camerista incluem um concerto em Roma (Itália, 2013) com o conjunto “La Selva” e em Lisboa (Portugal, 2014) com o amigo e grande flautista português António Carrilho.

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