Tenho recebido muitas mensagens perguntando coisas como:
– Como escolher um bom professor?
– Como sei se determinado professor é realmente bom?
– Quem é um bom professor?
– Com quem devo estudar?
Estas perguntas, muitas vezes podem nos colocar numa “sinuca de bico”, pois nossa resposta sempre estará vinculada às nossas próprias experiências pessoais, sejam elas boas ou ruins. Por isso, hoje ao reler um tratado sobre música do séc. XVIII, “On playing the flute” publicado no ano de 1752 por Johann Joachim Quantz (1697-1773), encontrei alguns critérios bem imparciais que respondem diversas destas perguntas. O livro original (com versões em alemão, francês ou inglês) pode ser encontrado no IMSLP. Neste tratado, Quantz se coloca na posição de grande mestre, ensinando passo a passo como tocar flauta, explicando questões referentes à estilo, musicalidade, fraseado, ornamentação, entre outras coisas. Por isso, traduzi o trecho que trata da escolha de um bom professor, o qual coloco a seguir.
As palavras não são minhas, e foram escritas há mais de 250 anos, no entanto, permanecem muito atuais, afinal foram escritas com muita sabedoria.
Introdução:
Sobre as qualidades requeridas àqueles que querem se dedicar à música
Sobre a escolha de um professor
§ 9
Todos aqueles que têm talento e inclinação para a música devem colocar todos os esforços para garantir o estudo com um bom professor. Eu me estenderia muito ou despenderia muitas páginas para falar de professores em todas áreas da música. Como exemplo, irei apenas discutir sobre o professor requerido para o estudo da flauta. É verdade que este instrumento passou a ser muito usado nos últimos 30 ou 40 anos, especialmente na Alemanha. Como não era o caso, no momento em que o instrumento ficou na moda, nós nunca sentimos falta de repertório através do qual o estudante pudesse desenvolver a habilidade de tocar o instrumento, com um pouco de dificuldade mas não muita, para controlar a língua [articulação], dedos e embocadura. Apesar disto, ainda existem poucos que sabem como tocar a flauta de acordo com a sua natureza e dentro do estilo. Até parece que a maioria dos flautistas atualmente [no ano de publicação, 1752] certamente tem dedos e língua, mas não tem cérebro, não é mesmo? É absolutamente necessário, para qualquer um que queira aprender a tocar adequadamente um instrumento, ter um bom professor, e eu expressamente exijo isto de todos que queiram usar o meu método. Mas quantos existem que podem ser intitulados de professores [mestres] de forma justa? Não seriam a maioria deles, quando analisados de perto, apenas estudantes de sua ciência? Como então, podem eles ensinar música, se estes permanecem em estado de ignorância? Para ser honesto, existem alguns que até tocam bem, ou ao menos, suficientemente bem; muitos, por outro lado, não possuem a habilidade necessária para transmitir aos outros aquilo que sabem. É possível que aquele que toca muito bem não saiba como ensinar. Outro, pode ensinar melhor do que toca. E ainda, um estudante que não tem condições de julgar qual professor ensina melhor ou pior, ainda assim será realmente afortunado se tiver a chance de escolher o melhor. Os atributos que definem um professor que irá treinar bons alunos são difíceis de definir em detalhes, mas podemos ter uma idéia aproximada tendo em vista a lista de defeitos que descrevo a seguir, e que devem ser evitados. Um iniciante também se beneficiará por se aconselhar com pessoas imparciais, mas que ainda tenham contato com a música. Um estudante precisa evitar aqueles professores que não entendem nada de harmonia, e aqueles que nada são além de instrumentistas; aqueles que não aprenderam completamente o que sabem e de acordo com os princípios corretos; aqueles que não têm noção muito clara sobre embocadura, dedilhado, respiração e articulação; aqueles que não sabem como tocar passagens difíceis de um Allegro ou fazer pequenos ornamentos e gracejos em um Adagio, de forma distinta e natural; aqueles que não tocam de forma agradável e compreensível, ou que não possuam um gosto refinado no geral; aqueles que não conhecem as proporções das notas para poder tocar com afinação perfeita; aqueles que não sabem observar o tempo com grande precisão; aqueles que não sabem como tocar com ar plano consistentemente, e introduzir ornamentos como appoggiaturas, pincements, battements, flattements, doublés e trinados nos lugares corretos; aqueles que, em um Adágio, não sabem como extrapolar os ornamentos (isto é, colocar ornamentos não escritos em notas planas) assim como são exigidos pelo ar e pela harmonia; e aqueles que são incapazes de criar luz (chiaro) e sombra (scuro) através das alternâncias de Forte e Piano e também através dos ornamentos. O estudante deve evitar o professor que não está em posição de explicar claramente e detalhadamente tudo o que o estudante tiver dificuldade de entender, e que procura comunicar tudo apenas pelo ouvido do aluno e por imitação, assim como treinamos pássaros; o professor que bajula o aluno e negligencia seus defeitos; aquele que não tem paciência de mostrar a mesma coisa ao aluno frequentemente, dando tempo para o estudante repetir; aquele que não sabe como escolher o repertório apropriado à capacidade do estudante de um momento para o outro, e como tocar cada peça no estilo apropriado; aquele que procura impedir o estudante de progredir; aquele que não prefira honra ao invés do auto-interesse, [que não prefira] privações de conforto e serviço desinteressado ao invés do ciúme e inveja; ou aqueles que não tenham a própria música como seu objetivo principal. Professores com estes defeitos não são dignos em hipótese alguma de formar bons alunos. Se ao contrário, encontrar um professor [sem tais defeitos] que possua alunos que não apenas toquem com clareza e naturalidade, mas também toquem bem embasados na métrica [musical], tais argumentos constroem uma boa imagem em favor deste professor.
§10
Quem quer que deseje se tornar um músico profissional terá uma vantagem considerável se este cair nas mãos de um bom professor bem no início de seus estudos. Existem alguns que têm a prejudicial ilusão de que no início dos estudos não é necessário ter um bom professor para ensinar os princípios fundamentais. Por uma questão de economia estes escolhem pelo mais barato, e geralmente estes [professores] não sabem nada, são como cegos guiando cegos. Eu recomendo fazer o oposto. Devemos garantir o melhor professor no início dos estudos, mesmo se suas aulas custarem duas ou três vezes mais do que a dos outros. No final, não vai custar mais caro, pois tempo e esforço serão economizados. Muito mais é conquistado em um ano de estudo com um bom professor do que [em] dez anos com um professor apenas mediano.
Palavras escritas há mais de 250 anos, por um músico, virtuoso, compositor, escritor, luthier, e professor alemão, muito sábio e consciente do que é de fato importante para o aprendizado de um instrumento musical. É interessante notar que naquela época, Quantz achava importante combater a bajulação, o auto-interesse, o ciúme e a inveja, pois professores com estes defeitos não formariam bons alunos. Além disso, para ele não bastava tocar muito bem o instrumento, pois a paciência, a honra, o desinteresse, a didática, o conhecimento musical e estilístico, da técnica do instrumento, das proporções musicais e da harmonia, são habilidades importantíssimas para um bom professor.
Ressalto também, quando Quantz comenta sobre professores que tentam impedir o aluno de progredir: ao que realmente ele se refere? Imagino que sejam professores que, com medo da competição, por orgulho próprio ou por outra razão, dificultam a vida do aluno durante seus estudos, seja evitando ensinar tudo o que sabe, seja brigando ou cortando relação com os alunos quando estão para terminar o curso, seja até mesmo impedindo o aluno em uma oportunidade profissional durante seus estudos, o que poderia ser até categorizado como assédio moral atualmente. Infelizmente, estas atitudes são humanas, e poucos são os que lutam contra estes sentimentos e atitudes em si mesmos.
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